Piloto, que morreu após acidente na curva Tamburello na Imola, visitou a região em uma das últimas viagens pelo país antes de embarcar para a fatídica temporada de 1994 da F1
O Brasil relembra nesta quarta-feira, 1° de maio, os 30 anos da morte de Ayrton Senna, o tricampeão da Fórmula 1 (F1) que foi um dos principais ídolos do esporte nacional. Quatro meses antes da tragédia na curva Tamburello do autódromo de Imola, na Itália, o piloto se divertia numa pescaria em Cândido Mota, município vizinho a Palmital. E, para marcar a data, o JC reproduz trechos de matéria produzida pelo jornalista Luiz Beltramin.
Mesmo com o sucesso nas pistas, Senna mostrou descontração e humildade em uma das suas últimas viagens pelo Brasil janeiro de 1994, quando esteve em Cândido Mota. Dias depois, o tricampeão embarcaria para a Europa para iniciar os treinos com a então nova equipe, a Williams/Renault, na fatídica temporada 1994 da F1.
Nada de bastidores dos padocks, tampouco expectativa sobre o sonho realizado de, finalmente, pilotar os carros da escuderia inglesa que reinavam na categoria havia dois anos com monopostos que, até então, praticamente se “guiavam sozinhos”. Na visita a Cândido Mota, o assunto era conversa, literalmente, “de pescador”, lembra Ivo Guiotti, proprietário do pesqueiro que recebeu o piloto. No entanto, o espírito competitivo estava presente. “Não queria ‘perder’ nem na pescaria”, recorda o piscicultor.
História de pescador
Foi assim que as primeiras pessoas que ouviram sobre a visita encararam o fato. Apesar de não ser 1° de abril, jornalistas da região (alguns avisados pelo próprio dono do criadouro), chegaram a debochar da informação e não deram credibilidade para o tremendo furo que desembarcaria de jatinho no aeroporto de Assis.
Um dos poucos que botaram fé foi o radialista Chico de Assis, que entrevistou o piloto ainda ao lado da aeronave. “Pouca gente acreditou, achavam que era algum trote”, recordou o locutor, em entrevista para o jornal Diário de Assis, concedida em 2006.
Também jornalista atuante na época, o professor universitário Cláudio Messias, ao receber a informação de que Senna estava em Cândido Mota, correu (em velocidade de Senna) para checar a veracidade do boato, que chegou a virar piada na região. Segundo ele, em relato publicado no site “Assiscity”, nem o então prefeito candidomotense Cidinho de Lima acreditara de primeira. “O Mansell veio junto?”, ironizou o mandatário para, instantes depois, admitir de queixo caído: “é verdade, o homem está aqui”.
O “Leão” não veio mesmo. Contudo, de acordo com a família Ghiotti, Senna pretendia trazer o amigo Gerard Berger, companheiro de equipe na McLaren entre 1990 e 1992, para participar de nova pescaria na propriedade rural. Ímola não deixou.
Confidencial
Era uma tranquila e rotineira manhã de trabalho na piscicultura Bonanza. De repente, toca o telefone no escritório da administração da propriedade, célebre em publicações voltadas ao universo rural pelo pioneirismo na criação de alevinos. Do outro lado da linha, Milton da Silva, pai de Ayrton, sondando sobre alternativas para criação de peixes pretendida por Senna na fazenda da família, em Tatuí. O pai do tricampeão, lembra a família proprietária, pedia o máximo de discrição quando agendou a visita.
Senna desembarcou no aeroporto estadual de Assis em 18 de janeiro, uma quinta-feira. Após a notícia sair no rádio, fãs correram ao aeroporto. Quem foi para o terminal na última hora lembra de Ayrton abraçado por crianças. Mas na beira dos lagos, a criança era Senna, recorda Ivo.
O espírito de competição na pesca só foi quebrado na hora do almoço. Apesar do banquete oferecido, Ayrton, acostumado à melhor gastronomia do mundo, deu show de humildade. “Ele queria mesmo era arroz com feijão e ovo frito”, detalhou Mirian, esposa de Ivo. Detalhe, acentuou Messias, foi o próprio Senna quem pilotou o fogão à lenha no preparo da mistura.
Prescrição e intuição
Tilápias e pintados fisgados, alevinos na bagagem, junto ao conhecimento sobre a criação nos laboratórios da piscicultura, Senna decolou do aeroporto de Assis para São Paulo, de onde rumaria no dia seguinte para Angra dos Reis, onde passou o final de semana. Dias depois, o tricampeão chegava à Europa para os primeiros testes na Williams que, devido às mudanças no regulamento para aquela temporada, perdera toda a parafernália eletrônica.
Mesmo com o potente motor Renault, Senna taxava o modelo FW16 de “cadeira elétrica”. Rebelde, desconfortável e instável, o carro não passava segurança tanto em termos competitivos, mas também fora do âmbito desportivo. A desconfiança sobre o monoposto, somada aos episódios do final de semana mais trágico da categoria (grave acidente de Rubens Barrichello e morte do austríaco Roland Ratzemberger nos treinos classificatórios) fizeram Senna repensar a carreira.
Na véspera da batida que vitimou o tricampeão, o professor Sid Watkins (morto em 2002), médico que tentou salvar o ídolo ainda na Tamburello, lembrava ter aconselhado um angustiado Ayrton a largar o mundo perigoso e agitado das corridas. “Você não precisa mais provar nada a ninguém. Vamos pescar, você gosta disso”, recomendava em relato do próprio no documentário “Senna”.
Watkins e Senna eram parceiros de molinete e costumavam fisgar salmões na Europa. As tilápias e pintados, na provável última pescaria de Ayrton em Cândido Mota, não chegaram a ser apresentadas ao amigo neurocirurgião. O médico acertara na prescrição, talvez sem saber que um dos últimos dias de total tranquilidade do ídolo – preparação e início da temporada 1994 tiveram domínio da tensão – ocorreram, justamente, com a combinação isca, anzol, amigos e histórias (verídicas!).