Como sempre, abro com um hilário “causo”.
O milagre
José Maria Alkmin, a raposa mineira, mestre da arte política, chegava da Europa com cinco garrafas enroladas na pasta. A alfândega quis saber o que era.
– Água milagrosa de Fátima.
– Mas tudo isso?
– Lá em Minas o pessoal acredita muito nos milagres da água de Fátima. Não dá para quem quer.
– O senhor pode desenrolar?
– Pois não, meu filho.
– Mas, deputado, isso é uísque.
– Ué, não é que já se deu o milagre?
- Parte I
O marketing de Aluízio Alves
Descrevo, na primeira parte da coluna, a contribuição dada por Aluízio Alves, ex-governador do RN, para a fixação dos eixos do marketing político no país. Modesta contribuição para aclarar os primórdios da comunicação eleitoral no Brasil.
Década de 60
O marketing político, no início da década de 60, ganhou um colorido todo especial com a campanha de Aluízio Alves, no Rio Grande do Norte. Jornalista, companheiro de Carlos Lacerda, na Tribuna da Imprensa, onde foi redator-chefe, deputado Federal aos 23 anos, cargo que ocupou quatro vezes, Aluízio, natural de Angicos/RN, fez a mais vibrante campanha de governo estadual de 1960, desenvolvendo uma trajetória que abriria espaços para a criação e consolidação da maior estrutura política do Rio Grande do Norte, nos últimos 40 anos.
As vigílias da esperança
Pela criatividade de seu estilo de fazer política e importância de suas campanhas para o marketing político, selecionei passagens de sua vida, algumas contadas por ele mesmo em conversas pessoais com este autor. Organizou, como deputado, a campanha “Um amigo em cada rua – 160 comícios em 16 dias e as Vigílias da Esperança”. E, na campanha de 60, de certa forma, iniciava-se a profissionalização das atividades de marketing. Aluízio já carregava boa experiência das lides eleitorais. Com Lacerda, participou ativamente da campanha udenista contra Getúlio Vargas. Aluízio Alves, portanto, deputado Federal, não era jejuno. Arrumou um eficiente discurso e criou um dos mais eficazes sistemas de mobilização popular de que se tem notícia. Contratou a primeira pesquisa do Ibope a um precursor do marketing político, Albano, que orientara, em Pernambuco, a campanha vitoriosa de Cid Sampaio. Não gostou do plano que Albano apresentou. Ficou apenas com as pesquisas.
Intuição
Preferia guiar-se pelo feeling. Agia com apurada intuição. Se o adversário, Dinarte Mariz, o chamava de tuberculoso, respondia, para gáudio das massas: “é melhor ter tuberculose no pulmão do que ser tuberculoso das ideias“. Transformava aparentes qualificações depreciativas feitas pelos adversários em aspectos positivos. Ganhou um apelido “cigano”, que fez sucesso. O próprio Aluízio Alves conta: “Em Pau dos Ferros, o adversário (Djalma Marinho, apoiado por Dinarte Mariz) fez comício na véspera da minha chegada. E salientou que tinha uma vida organizada, com escritório de advogado em Natal etc., enquanto eu andava pelo Estado, de dia e de noite, sem almoçar ou jantar na casa dos líderes que me apoiavam, se dormia era nas estradas. Os amigos ficaram revoltados. E foram me esperar a dois quilômetros da cidade, para contar o episódio e dizerem que o povo todo estava aguardando a minha resposta no mesmo tom“.
O cigano
– Ouvi as recomendações e fui para a cidade. Lá, a multidão ansiosa. Peguei o microfone e disse: “Pau dos Ferros, o cigano chegou”. Sob aplausos constantes e cada vez mais entusiastas, comecei a ler as mãos do povo, como se fosse “cigano”: a mão do agricultor, da dona de casa, do comerciante, do estudante. Foi um sucesso, que passei a repetir em outros lugares, sobretudo depois que dona Guiomar Morais fez a música do “Cigano”, que logo se espalhou por todo o Estado e passou a ser “Cigano feiticeiro”, porque na letra falava que o cigano a enfeitiçara.
“Minha gentinha”
À medida que meus comícios cresciam, em Natal, os adversários começaram a se impressionar e tratarem de desvalorizar aquelas multidões, dizendo que o povo não se assombrasse com aquelas multidões, pois a grande maioria era de “gentinha” analfabeta e de “crianças”, que iam se divertir, mas não votavam.
– A partir daí, adotei posições: me dirigia à “minha querida gentinha” e anunciava que tinha um segredo para dizer às crianças: elas podiam votar, mas eu só ensinava perto das eleições. E, assim, elas continuavam a ir aos comícios e a me procurar, com centenas de “lenços verdes”. O povo gostou a tal ponto que, quando não dispúnhamos mais de lenços verdes para dar a multidão, esgotados os tecidos no comércio da capital, do interior, de João Pessoa, Campina Grande, na PB, explicávamos: “A minha gentinha não precisa de lenços, que são caros. Cada um, na sua pobreza, faz o seu lenço: arranca um galho de árvore e ele será lenço e bandeira”. E aí, no exagero do entusiasmo, havia correligionários que levavam galhos de mamoeiro, cachos de bananas, cocos verdes, que levantavam nos braços na hora de aplaudir. E durante a noite inteira. Ainda não existia o Ibama.
Nas madrugadas
– Os comícios e passeatas atravessavam a noite e a madrugada. No começo, de 20h até 6 da manhã. Depois, do sábado à noite, dia e noite de feriados. Por quê? Porque, em 1958, eu fazia 10 comícios em Natal (160 em 16 dias) e o interior reclamava. Fiz a experiência em Parelhas. Saí de Natal às 23h, estrada de barro e buracos, cheguei às 4h da manhã, apenas para acordar os líderes e pedir desculpas. O povo estava todo na praça, cantando os hinos da campanha”.
A caravana verde da esperança
A cor verde, ampliada, massificada, a ponto de chegar nas cumeeiras das casas mais distantes, por meio de bandeiras e bandeirolas que tremulavam ao vento, transformou-se num grande laço de integração do eleitorado. O verde era a metáfora da esperança. Até hoje, no Rio Grande do Norte, casas modestas, em recantos bucólicos, ainda se encontram, aqui e ali, vestígios esverdeados da famosa caravana da esperança. Nos comícios, o povo portava galhos verdes, que substituíam os lenços verdes, simbolizando a pobreza, o despojamento, a espontaneidade popular e o culto à natureza. Era uma campanha estruturada na voz, na força, na mobilização do povo. A campanha do pobre contra o rico, do opressor contra o oprimido. Aluízio cercava-se de símbolos, cores e músicas. Uma delas, de letra enorme, chegou a inserir, de maneira melódica, a palavra (palavrão para um compositor) “industrialização”. Era uma espécie de hino-programa, descrevendo compromissos nas áreas da agricultura, energia (da hidrelétrica de Paulo Afonso), educação, melhores salários para o trabalhador. Desenvolvimento, em suma, era o eixo que unia os temas. Música até hoje recitada.
A massa pobre
Nos comícios, o discurso de Aluízio, expresso em voz muito rouca, produto de noites não dormidas, caminhadas por estradas poeirentas, muito calor e má alimentação, carregava nas imagens fortes. Os personagens recorrentes eram as famílias pobres, mães raquíticas que carregavam os filhos seminus nos braços, agricultores de enxada no ombro, biscateiros, empregadas domésticas, pescadores, enfim, “a gentinha”, uma ferramenta de mobilização (revoltada, a gentinha se avolumava cada vez mais nos comícios) e mais um canhão para destroçar as baterias adversárias. As crianças constituíam outro braço importante da campanha. Aluízio chegou a fazer comício só para crianças. E pedia a elas que, no dia da eleição, acordassem às 6h, batessem na porta dos quartos dos pais para acordá-los: “papai, mamãe, vovô, vovó, todos, está na hora de acordar para votar em Aluízio“. Depois de seu famoso Comício das Crianças, o juiz de menores proibiu outros comícios semelhantes. Aluízio mandou imprimir 10 mil cartões com seu retrato e, no verso, escreveu uma “carta à criança proibida”. E ele mesmo, nas ruas, passou a distribuir a carta.
Andarilho
A simbologia foi usada com eficácia. De sua própria voz, ouvi algumas histórias, dentre as quais selecionei duas, para caracterizar seu estilo. A primeira foi sobre as caravanas de andarilhos que corriam as cidades. Aluízio saiu da capital, Natal, para Mossoró, a maior cidade, no meio do Estado, num arrastão político que mais se assemelhava a uma peregrinação religiosa. Tinha muita mística. No meio da andança, contou ele, viu uma mulher esquálida, na beira da estrada, com a filha esquelética nos braços. A mulher se aproximou, sem falar palavra, e a filha, olhos mortíferos, abriu lentamente a mão, onde estava uma pequena moeda de 10 centavos, a única coisa que aquela família podia dar para a campanha do tostão contra o milhão. Aluízio recebeu a ajuda, passou a relatar esse caso em todos os comícios, com o adendo de que, depois da realização do primeiro grande compromisso, estaria ao lado daquela menina. Vitorioso, Aluízio cumpriu o compromisso. Na inauguração da energia de Paulo Afonso, foi a menina que acionou o botão das máquinas.
Um caso clássico
Ele sempre foi perito na arte de transformar o negativo em positivo, em dar brilho a coisas foscas ou, como diz o vulgo, a tirar leite de pedra. Na campanha para prefeito de Mossoró, em 1968, foi chamado para ajudar o correligionário Antônio Rodrigues, identificado com as causas dos pobres, contra o intelectual Vingt-Un Rosado, agrônomo e escritor de muitos livros, e integrante da famosa família Rosado, cujos nomes masculinos eram grafados com o alfabeto numeral francês (as mulheres recebiam a designação feminina ème – Trezième era uma delas). Era a campanha do “touro” – Vingt – Un – contra o “capim”, Toinho. Mas este tinha um grave problema: era alcoólatra. Aluízio chegou para encerrar a campanha, viu uma pesquisa que dava derrota para seu candidato, e percebeu que a fama de beberrão de seu candidato era o problema, principalmente para as mulheres e jovens. Chamou Antônio Rodrigues e a mulher, mostrou a situação e disse que iria tocar no assunto no comício. Foi um deus-nos-acuda: “pelo amor de Deus, não toque nisso, pois só vai complicar“.
Virou o voto
E Aluízio: “deixem comigo, vai dar tudo certo“. Começou assim o discurso para a multidão atenta: “tenho aqui, uma pesquisa que diz: se forem apurados 20 mil votos, meu candidato aqui presente perderá a eleição por quatro mil votos“. Ouviu-se um sussurro de estupefação e contrariedade. Aluízio foi em frente: “passei no açougue e perguntei o preço da carne. Não dá para pobre nenhum comprar. Passei na farmácia e vi os preços. Os remédios custam os olhos da cara. Passei na padaria. A mesma coisa“. Aluízio desfilou histórias de compadres e comadres que se queixavam da carestia. Mostrava intimidade com pessoas das cidades, citando seus nomes, descrevendo suas casas e filhos. E foi arrumando o final do discurso: “desse jeito, ninguém aguenta. E não há outro jeito. O negócio é deixar as dores, as amarguras, as angústias na bodega“.
O pobre é quem bebe cachaça
– O pobre, que não tem dinheiro para pagar meio quilo de carne, pede um oito de cachaça, e vai dando sua bicadinha. Pobre mata suas mágoas na velha cachaça. Rico, esse, sim, pode beber uísque. Vocês sabem quanto custa uma garrafa de uísque? O preço dá para comprar 30 garrafas de cachaça. Pois Vignt-Un só toma uísque. Agora, imaginem o dr. Vingt-Un, prefeito eleito, no seu gabinete. Chega um pobre, fedendo à cachaça, e diz que precisa falar com o senhor prefeito. O assessor vai logo dizendo que o prefeito está em reunião. E assim, cada um vai chegando e recebendo a mesma negativa. Pobre, com dr. Vingt-Un, não tem vez. Imaginem, agora, Toinho como prefeito. Chega lá Zé Peixeiro, com aquele bafo de cachaça, para falar com ele. O assessor, um sujeito simples, pede um minutinho e avisa: Toinho, Zé Peixeiro tá lá fora querendo falar com você. Só que está com aquele bafo. E Toinho, mais que depressa, pede: “mande, já, o colega entrar”.
Aplausos
A multidão, a essa altura, irrompia em aplausos e gritos. As mulheres que faziam restrições a Antônio Rodrigues passaram a levantar os braços em apoio a Aluízio, que arrematou: “Toinho bebe a bebida do povo. Toinho bebe para afogar as mágoas, como faz o povo. Toinho é povo, Toinho é a cara de todos vocês. Podemos ganhar esta campanha. Basta que cada se torne um grande cabo eleitoral, buscando mais votos. Vamos sair daqui com uma missão: ganhar a luta“. A multidão saiu acesa. Cada participante partiu com vontade. Antônio Rodrigues ganhou a campanha por 98 votos. Foi a consagração da metáfora do beberrão, que bebe cachaça para afugentar as mágoas. A cachaça, como o gole mais barato da ilusão nacional, não travou na garganta dos eleitores. Ficou amaciada pelo fermento da retórica aluizista, que, naquela noite, falou por 2h50 minutos, com a voz rouca. Na campanha de Mossoró, em 72 horas, ele falou 138 vezes. Aluízio Alves fez uma biografia usando apenas a memória. Exerceu sete mandatos de deputado Federal, governou o RN por cinco anos, foi ministro de Estado em dois governos, foi secretário-Geral da UDN, membro da Comissão Executiva do PMDB. Se alguém lhe pergunta quem orientou sua campanha de 60, ele responde: o povo. Em seu livro, “Aluízio Alves, O que Não Esqueci”, falando de seus êxitos, confessa: “o meu mérito terá sido o de viver e fazer da vida uma campanha, uma luta, um trabalho e alguns sonhos. Uns realizados, outros não“.
- Parte II
Raspando o tacho
– Ao visitar Fernando Henrique, que fez 93 anos, Lula dá ideia de querer capturar estratos dos tucanos desgarrados.
– Quinta-feira, teremos o primeiro debate entre Donald Trump e Joe Biden, nos EUA. A aflição já escorre dos olhos assombrados das torcidas sob a expectativa de gafes e perda de memória, de um ou de outro, ou de ambos.
– Arthur Lira deve eleger o sucessor na presidência da Câmara. Rodrigo Pacheco patrocinará, no Senado, o senador Davi Alcolumbre.
– Tarcísio de Freitas já entrou com meio sapato no clima de 2026. Eleição presidencial à vista. O cavalo selado passará em frente a sua calçada.
– O governo Lula III não vai bem. Em ritmo de desesperança.
– O RS, assolado por enchentes, é o Estado-símbolo da reconstrução. Força, gaúchos.
– Rússia entra de cabeça na nova Guerra Fria. Com os aplausos da China, parceira.
– A limusine que o ditador da Coréia do Norte, Kim Jong-un, ganhou de Putin, é um brinquedinho que aproximará os dedos do dirigente do arsenal nuclear.
– O Brasil comeu muito milho nesses dias de festas juninas. Mais gordas que as anteriores. Pança cheia.
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Gaudêncio Torquato jornalista, consultor de marketing institucional e político, consultor de comunicação organizacional, doutor, livre-docente e professor titular da Universidade de São Paulo e diretor-presidente da GT Marketing e Comunicação.
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A coluna Porandubas Políticas, integrante do site Migalhas (www.migalhas.com.br), é assinada pelo respeitado jornalista Gaudêncio Torquato, e atualizada semanalmente com as mais exclusivas informações do cenário político nacional.