‘Não podia ajudar a salvar vidas por ser gay’, diz jovem sobre doação de sangue

Três anos após ter que mentir sobre sua orientação sexual para salvar vidas com a doação de sangue, o roteirista Matheus Costa, de 29 anos, comemorou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que por maioria de votos, derrubou restrições à doação de sangue por homens gays. Após o STF, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) revogou trecho de resolução que impedia que homens que tiveram relação sexual com outro homem pudessem doar sangue dentro do prazo de 12 meses após a relação sexual.

“Em 2017 doei porque sempre tive vontade de ajudar. Acho que é uma medida tão simples e que pode salvar tantas vidas. Acho falha de caráter alguém se negar a doação de sangue. O problema é que eu não podia ajudar a salvar vidas se falasse a verdade, pelo simples fato de ser gay”, diz o jovem, que mora em São Vicente, litoral paulista.

A mudança na norma da Anvisa foi publicada nesta quarta-feira (8) no “Diário Oficial da União” e tem validade imediata. A resolução informa que será elaborada por gerência da Anvisa “orientação técnica a respeito do gerenciamento dos riscos sanitários e das responsabilidades pertinentes aos serviços de hemoterapia públicos e privados em todo o país”.

A medida permitirá que muitas pessoas já impedidas de doarem sangue, agora tenham a oportunidade. Como o caso de Costa, que conta que no ano em que resolveu fazer a doação, teve que mentir sobre sua orientação sexual ao ser questionado se mantinha relação com outros homens. O sentimento de ser vítima de um esteriótipo preconceituoso, conforme conta o roteirista, o fez desistir de voltar outras vezes ao banco de sangue.

“Doei essa única vez e tive que mentir. É muito cruel as perguntas discriminatórias que nos submetem, colocando os homossexuais em um patamar de promiscuidade eterno, que elimina os heterossexuais. É ridículo. O fato de uma pessoa ser saudável tem que falar por si. Acho que por isso nunca mais voltei, toda vez que algum amigo me chamava para doar já me vinha essa sensação horrível da discriminação e o que teria de inventar pra passar na triagem”, lamenta.

 

‘Inconstitucional’

No dia 8 de maio deste ano, o STF decidiu, por maioria de votos, derrubar restrições à doação de sangue por homens gays. A maioria dos ministros decidiu que normas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que limitam a doação de sangue por homens gays são inconstitucionais.

Esse julgamento começou em 2017, em plenário físico, com o voto do ministro relator, Edson Fachin. Ele afirmou que as normas geram uma “discriminação injustificada” e ofendem o princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade perante outros doadores. “Orientação sexual não contamina ninguém. O preconceito, sim.”

Essa votação que derrubou as restrições foi feita um mês após o Ministério da Saúde afirmar, no início do mês de abril, que iria manter as restrições atuais à doação de sangue por gays, apesar de um grande número de hemocentros pelo país relatar estoques baixos devido à pandemia de coronavírus.

Além disso, no dia 30 de abril, a Advocacia-Geral da União (AGU) pediu que o STF rejeitasse a ação – ou seja, nem chegasse a analisar o tema.

Pelas regras vigentes na época, homens que tiveram relações sexuais com outros homens nos 12 meses anteriores à doação não poderiam doar sangue.

Porém, a decisão do STF contrariou essas regras, fazendo com que a comunidade LGBT comemorasse a conquista. “O sentimento é de liberdade. A gente não ter que fingir ser algo que não é para fazer uma doação é um alívio! Nós gays já superamos de tudo para sermos quem somos na sociedade. Não vou ter que fingir novamente!”, comemorou Matheus.

 

Decisão histórica

A advogada Patrícia Gorish é de Santos (SP). Fundadora da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (ABRAFH) e diretora nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), ela participou do processo contra restrições a doação de sangue por homens gays, que foi votado pelo STF.

“Entrei como “amicus curiae” (amigo da Corte) e peticionei representando a Associação e o Instituto junto com outros advogados. Para chegarmos até lá, primeiro entraram com ação pelo partido político (PSB). Depois, quando vi a temática, achei que poderíamos contribuir com dados científicos já que tenho pós doutorado em Direito da Saúde. Porque o amigo da corte é exatamente isso, é quem vai ajudar os ministros com dados, para que eles façam uma melhor decisão sobre o tema”, explica.

Para Patrícia, a decisão do Supremo Tribunal Federal foi histórica. “Ela vai garantir o direito da solidariedade e a cidadania para as pessoas LGBTI em geral, e não só aos homens, já que todas essas pessoas eram barradas”, diz ela.

Patrícia participou de processo votado pelo STF que derrubou restrições de doação de sangue por homens gays — Foto: Reprodução/Facebook

Para a advogada, por ser significativo historicamente receber o sangue de outra pessoa, a decisão poderá diminuir a discriminação sofrida pela comunidade LGBTI. “A questão é que a resolução que proibia a doação por homossexuais parte de uma premissa falsa, da promiscuidade. É um preconceito. O que se deve considerar é se a pessoa tem comportamento de risco e não só pela sua orientação sexual. Se a pessoa respondesse que era gay, automaticamente era descartada da doação, independente do comportamento. Isso é errado, muito héteros que vivem vidas promíscuas não passariam pelo que os gays eram submetidos”, coloca.

Patrícia afirma que a decisão traz de mais importante a dignidade a essas pessoas. “Quando eu estava lá no STF no dia da decisão, um jornalista gay chegou em mim e disse: ‘se isso for aprovado hoje, amanhã vou doar sangue, porque sempre foi muito constrangedor quando pais de amigos e familiares precisavam e eu era impedido de ajudar’. Eu nunca vou esquecer disso. O pior é que pesquisas apontam que no Brasil eram 13 milhões de litros de sangue jogados fora anualmente devido a essa proibição”, destaca.

A ideia apresentada por Patrícia, também é defendida pela coordenadora executiva da Comissão Municipal de Diversidade Sexual de Santos, Taiane Miyake. Como transexual, ela acredita que a decisão representa uma conquista de direitos para toda a comunidade LGBTI.

“Apesar de sempre ter em mente que o ato de salvar vidas não pode ser reduzido pelo preconceito e ignorância, eu nunca fui doar sangue justamente pra não sofrer um constrangimento, ou até ser rechaçada por ser uma mulher transexual. Eu já tive sim vontade de estar doando, mas não fui justamente por saber o desfecho”, disse Taiane.

De acordo com ela, apesar do HIV ser ainda ligado a comunidade LGBTI, já é comprovado que a Aids é relacionada ao comportamento de risco de uma pessoa e não a um grupo específico. Taiane diz isso por trabalhar diariamente orientando sobre a doença a mulheres transexuais que vivem em situação de risco.

“Em um país preconceituoso, em que o próprio presidente reforça os preconceitos contra nós, o STF mais uma vez se mostrou a favor das minorias sociais, dos grupos de maior vulnerabilidade e das minorias sexuais e de gênero”, acrescentou.

 

Fonte: G1

 

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