A americana Magdalena Cruz sempre soube que seu nascimento havia sido fruto de um estupro. Mas foi somente quando ficou adulta que ela começou a investigar os detalhes do crime cometido contra sua mãe e a buscar a identidade do estuprador, seu pai.
Atenção: esta reportagem contém detalhes perturbadores
A americana Magdalena Cruz sempre soube que seu nascimento havia sido fruto de um estupro. Mas foi somente quando ficou adulta que ela começou a investigar os detalhes do crime cometido contra sua mãe e a buscar a identidade do estuprador, seu pai.
Quando foi atacada e ficou grávida, em 1985, sua mãe vivia em um lar para pessoas com deficiência intelectual na cidade de Rochester, no Estado de Nova York. Aos 30 anos de idade, ela tinha a acuidade mental de uma criança de dois anos, usava fraldas, não falava e não conseguia se alimentar sozinha.
Cruz passou anos buscando evidências sobre o crime e sobre a negligência e tentativas de acobertamento por parte das instituições que tinham a missão de proteger sua mãe. Graças aos avanços nas técnicas de análise de DNA, ela conseguiu finalmente descobrir a identidade do estuprador, um funcionário do lar onde sua mãe vivia.
No mês passado, Cruz entrou com um processo na justiça contra o Escritório do Estado de Nova York para Pessoas com Deficiências de Desenvolvimento (OPWDD, na sigla em inglês), agência ligada ao governo estadual que coordena os serviços para pessoas com deficiência intelectual ou de desenvolvimento, incluindo os lares para abrigar essas pessoas.
Cruz move o processo em nome da mãe, na condição de guardiã. Ela acusa a instituição de ter permitido e acobertado “um padrão crescente de abuso que levou ao estupro violento de sua mãe por um membro da equipe”.
“Minha mãe teve uma vida difícil, e espero que este processo a ajude a receber os cuidados que ela merece depois que o OPWDD falhou em protegê-la de seu agressor 37 anos atrás”, diz Cruz.
Estupro e gravidez
Por ser vítima de crime sexual, a mãe de Cruz é identificada no processo apenas por suas iniciais, IC. Ela passou a maior parte da vida em lares para pessoas com deficiência, tinha um QI (Quociente de Inteligência) inferior a 20, classificado como deficiência intelectual profunda, era não verbal e se comunicava apenas por vocalizações, emitindo sons descritos no processo como “kee kee kee”.
Em 1976, quando IC tinha 21 anos, seus pais decidiram transferi-la para uma instituição perto de casa, o Monroe Development Center (MDC), lar que havia sido inaugurado em Rochester dois anos antes.
Os pais estavam empolgados com a perspectiva de poder visitar e monitorar a filha com maior frequência. Com quatro outros filhos e sem treinamento médico ou recursos, eles não tinham condições de cuidar de IC em tempo integral em sua casa.
Durante os dez anos seguintes, a vida de IC no novo lar pareceu transcorrer sem problemas. Mas, sem que seus pais soubessem, ela vinha sofrendo vários abusos.
Documentos descobertos anos depois e agora apresentados à Justiça mencionam que, pelo menos desde 1985, ela sofreu vários ferimentos, entre eles uma abrasão de 22 centímetros nas costas, um hematoma “em forma de cruz” no ombro esquerdo, inchaço e “descoloração profunda” na mão direita, um corte no topo da cabeça, hematomas nos quadris e uma marca de mordida no seio esquerdo.
Em outubro daquele ano, um funcionário identificado como JB escreveu em um relatório que IC “gosta de homens de cor, tira a roupa, às vezes grita, pula, come muito rápido”. Seus pais não sabiam dos abusos, até que, em maio de 1986, foram chamados para uma reunião, na qual receberam a notícia de que IC estava grávida de cinco meses.
Perplexos com a revelação, perguntaram como era possível que sua filha, com profunda deficiência e que nunca deixava as instalações onde vivia, tivesse ficado grávida. “O MDC disse aos pais de IC que suspeitava que outro paciente havia cometido o estupro, que estava investigando e que iria fazer um boletim de ocorrência na polícia”, diz o processo.
“Essas eram mentiras. Na verdade, o MDC encobriu o estupro, assim como encobriu o padrão crescente de cortes e hematomas no corpo de IC durante a gravidez”, alega o processo. A polícia nunca foi informada do caso.
Segundo Cruz e seus advogados, ao descobrir a gravidez de sua mãe, em vez de tomar medidas para identificar e punir o culpado, o MDC sugeriu que IC fosse transferida temporariamente para outro lar durante o resto da gestação e chegou a cogitar que ela passasse a tomar pílula anticoncepcional ou fizesse uma laqueadura.
Os pais de IC confiaram que a instituição estava investigando o caso e buscando suspeitos, e aceitaram transferir a filha até o nascimento do bebê. “Seus pais não tinham conhecimento do padrão de abusos, nem das mentiras do MDC”, diz o processo, e IC voltou a morar na instituição por mais nove anos após dar à luz.
Abusos e mortes ‘incomuns’
O MDC fechou as portas em 2013. O OPWDD, que era responsável por fiscalizar esse e outros lares para pessoas com deficiência, é o réu no processo.
Uma porta-voz do OPWDD disse à BBC News Brasil que a agência não pode “comentar sobre litígios pendentes”. “A segurança e o bem-estar das pessoas que ajudamos são a maior prioridade do OPWDD”, completou a porta-voz.
De acordo com o processo, os pais de IC não sabiam que o MDC tinha um histórico de “denúncias de negligência, abuso físico e sexual de pacientes e outros tipos de má administração”. Alguns anos antes, sete funcionários chegaram a ser presos “por abuso sexual de um adolescente com deficiência sob seus cuidados”.
O processo detalha vários desses casos, alguns noticiados pela imprensa da época. “Em junho de 1976, o diretor de serviços voluntários do MDC foi preso por estuprar um menino deficiente de 19 anos. Um guarda de segurança do MDC enfrentou as mesmas acusações depois de usar sua chave-mestra para destrancar a porta do menino”, diz o documento.
“Em maio de 1979, os pais de um menino de 14 anos com deficiência encontraram hematomas e vergões nas coxas e nádegas de seu filho depois de apenas três dias no MDC. Em 1980, um terapeuta de 49 anos foi descoberto na cama de uma paciente de 15 anos, resultando em uma ação judicial e uma declaração de responsabilidade contra a instituição.”
O processo também lista algumas mortes classificadas como “incomuns”, entre elas a de um paciente de 26 anos morto em 1982 após engolir cinco luvas cirúrgicas e a de um jovem tetraplégico de 21 anos morto por hipertermia no verão do mesmo ano após ter sido deixado por várias horas no sol sem ter o que beber.
“De 1976 a 1985, pelo menos dez funcionários foram identificados como pedófilos e estupradores, incluindo supervisores de equipe, guardas de segurança e voluntários. Há relatos de incidentes que detalham tortura psicológica”, diz o processo.
Mas, segundo Cruz, que é representada pelos escritórios de advocacia Crumiller P.C. e C.A. Goldberg PLLC, apesar de investigações na época, muitos funcionários envolvidos nesses casos “foram demitidos e recontratados, suspensos ou nunca foram submetidos a verificação de antecedentes”, e “nenhuma mudança significativa foi feita”.
A investigação
Cruz nasceu em agosto de 1986, uma menina saudável, e cresceu sem saber quem era seu pai. Ela diz que, ao longo da infância, tinha dificuldade de se relacionar na escola e enfrentou problemas de saúde mental.
Ao ficar mais velha, Cruz temia que nunca pudesse ter seus próprios filhos, “pois estaria condenada a perpetuar o ciclo de violência e trauma”.
Ela conta que se apoiou em sua fé religiosa para superar essas dificuldades, e eventualmente casou e começou a construir sua própria família. Foi então que Cruz decidiu se dedicar mais a fundo a investigar as circunstâncias de seu nascimento.
Em 2019, ela começou a pesquisar arquivos da cidade de Rochester e do OPWDD. “Foi assim que ela descobriu que os fatos em torno de seu nascimento eram muito mais chocantes e grotescos do que sua família imaginava”, dizem os advogados na ação.
“Não se sabe quantas vezes IC foi estuprada, por quantos homens, e quantos outros sobreviventes (de abusos) havia. O MDC provavelmente escondeu e encobriu quaisquer outros estupros ou abusos, como teria feito com sucesso neste caso, não fosse a gravidez”, alega o processo.
Chocada com o que havia descoberto, Cruz decidiu buscar justiça para a mãe. Ela calcula que, com base em sua data de nascimento, o estupro que resultou na gravidez de IC tenha ocorrido entre o final de novembro e o início de dezembro de 1985.
Cruz encomendou testes de DNA no site de genealogia Ancestry.com, que revelaram que tinha familiares do lado paterno no Estado da Virgínia. Após buscas na internet e em redes sociais para obter mais informações sobre essa família, Cruz encontrou uma fotografia de uma menina que “tinha exatamente os mesmos olhos que ela”.
Ela acabou identificando o pai da menina, que havia morado em Rochester. Esse homem, cujo nome tem as iniciais JB, era funcionário do lar onde sua mãe morava, o mesmo que assinou alguns dos relatórios descobertos por Cruz anos depois.
O processo
Munida de sua descoberta, Cruz levou o caso à polícia em setembro de 2019. Mas, apesar de os agentes terem confirmado que JB realmente trabalhou no MDC em 1985, não havia o que fazer, porque o crime já havia prescrito.
“O encobrimento do MDC conseguiu manter o(s) estupro(s) oculto(s) por tempo suficiente para que o estatuto criminal prescrevesse, impedindo a polícia de tomar medidas formais”, alega o processo.
No entanto, isso mudou no final do ano passado, quando o Estado de Nova York aprovou a chamada Lei dos Sobreviventes Adultos, que suspendeu temporariamente, pelo período de um ano, o estatuto civil de limitações para vítimas adultas de agressão sexual.
Com isso, Cruz pôde finalmente entrar com uma ação para buscar Justiça. Ela decidiu não processar o estuprador, mas sim o sistema estadual responsável pelos cuidados de pessoas com deficiência e pela contratação e manutenção de JB como funcionário.
“Ela (Cruz) é uma pessoa de muita fé religiosa, é assim que ela consegue viver sua vida, ela encontra muita orientação e inspiração por meio de sua fé”, diz à BBC News Brasil a advogada Julia Elmaleh-Sachs, do escritório Crumiller P.C., que faz parte da equipe que representa Cruz.
“Ela não queria entrar com um processo contra seu pai biológico”, ressalta a advogada. “Ele é citado ao longo da ação, mas queríamos realmente focar na negligência da instituição e em como (o OPWDD) tratou horrivelmente nossa cliente e outras pessoas como ela.”
“O réu (OPWDD) é indiretamente responsável pela agressão sexual de JB contra IC, porque JB era um funcionário atuando no âmbito de seu emprego no momento do estupro”, alegam os advogados na ação.
De acordo com o processo, o réu tinha o dever de proteger IC contra JB. Segundo a ação, a negligência demonstrada “foi extrema, flagrante, imoral, imprudente, deliberadamente indiferente”.
O futuro
Em 1995, nove anos depois do nascimento da filha, IC foi transferida para outro lar para pessoas com deficiência, na cidade de Penfield, onde vive até hoje. Aos 66 anos de idade, ela continua convivendo com deficiência intelectual severa, e acumulou outros problemas de saúde.
Ela sofre de artrite grave, de doença renal e de glaucoma, o que resultou em perda quase total da visão. Não consegue ingerir alimentos sólidos e depende de cadeira de rodas para se locomover. Cruz visita a mãe com frequência.
“Ela quer garantir que sua mãe receba o cuidado que merece e que o Estado fracassou em garantir por tantos anos”, diz a advogada Julia Elmaleh-Sachs.
Segundo a advogada, um dos objetivos da ação é garantir que as pessoas que precisam viver nessas instituições recebam os cuidados e os tratamentos que merecem e que foram prometidos a seus familiares.
“As instituições que abrigam os mais vulneráveis entre nós devem ser cobradas pelos padrões mais elevados. É isso que estamos tentando fazer com esse caso”, afirma Elmaleh-Sachs.
Fonte: G1