Cláudio Pissolito
Em novembro de 1974, o bancário Sidney Aparecido Ferreira, o Português, publicou artigo no jornal Folha de Palmital, intitulado “Monumento para o momento”, que hoje plagiamos o título, em referência à inauguração da esperada, comentada e especulada pizzaria Xangô. O mesmo artigo foi reproduzido pelo Jornal da Comarca, em 1994, a pedido do sempre atento professor Detto, quando a casa completou 20 anos, e depois em 2014, no aniversário de 40 anos.
O destaque nos dois jornais que circularam nos últimos 60 anos em Palmital revela a importância do Xangô como divisor de águas no contexto social e de costumes do século passado, principalmente entre jovens e adeptos da boa música nacional e internacional, seja MPB, Rock ou Jazz.
O ano era de 1974. Anterior às duas grandes geadas, de 75 e 77, que dizimaram os cafezais e mudaram o perfil socioeconômico de Palmital e da região. O prefeito era Manoel Leão Rego, o mais realizador e visionário da política local, época que havia sido iniciada a maior obra pública no município, que são os silos da Ceagesp, propalados como os maiores da América Latina.
Diante do contexto de otimismo, de esperança no desenvolvimento e na melhoria das condições de vida da população, uma construção na rua principal da cidade, feita de bambu verde, coberta de sape e mantendo uma touceira de bananeiras na porta de entrada, passou a chamar a atenção. O projeto dos jovens Eduardo Budini e Marinho Garcia visava economia na obra, a mudança do paradigma da arquitetura comercial e, principalmente, usar a rusticidade e a natureza para produzir efeito de aconchego e bem estar aos clientes.
Para completar os elementos incomuns contidos na nova casa comercial surgida naquela Palmital rural, cafeeira, de sociedade machista, de grandes fazendas habitadas por colonos e uma pequena elite comercial e industrial urbana, o nome Xangô, de um orixá das religiões de matriz africana, presente no candomblé e na umbanda, coroou o projeto como inusitado, curioso, atraente ou repulsivo, de acordo com a cultura, o sentimento e o julgamento de cada morador.
Assim nasceu o Xangô. Desafiador, desconstruindo padrões convencionados no século passado, estabelecendo novos conceitos e como insuflador de reações variadas, de debates e comentários benfazejos ou maldosos, escancarando a força da interrogação, na melhor forma de aprendizado, como referência de um projeto que nasceu predestinado a conspirar contra os modelos existentes e a levar à necessária reflexão sobre as concepções de vida, amizade, entretenimento e lazer.
O Xangô dividiu a cidade e a sociedade, desafiou a moral dos moralistas e até a religião, atraiu os libertários, incluiu mulheres no lazer noturno, desbravou novas vertentes do relacionamento social e comunitário, ensinou empatia, atraiu a curiosidade e despertou o amor na cumplicidade entre os iguais e o ódio maledicente dos inconformados incapazes de conviver com as diferenças ou de viver novas experiências.
Passaram-se 50 anos, a sociedade mudou, os gostos foram alterados, a internet dominou as relações humanas, o Xangô perdeu as bananeiras e ganhou alvenaria, depois virou Hits, em uma sucessão marcada pela sabedoria de manutenção do padrão de qualidade, da boa música, do ambiente e da decoração.
Mas o grande acerto está na preservação da atmosfera que ainda encanta os sentidos e atrai aqueles que sentem o prazer muito além da boa comida, como meio de convivência em espaço harmonioso e de muitas memórias afetivas do passado que sempre foi futurista e que ainda fascina os jovens mais sensíveis atraídos pelo monumento que não serviu apenas ao momento, mas sim para todo o tempo.
Cláudio Pissolito é jornalista, diretor do Jornal da Comarca e do portal de notícias JC Online e esteve na inauguração do Xangô