‘Órfãos da Covid’: filhos relatam como encaram o luto meses depois da morte de parentes

Parentes de mortos por Covid tentam retomar a vida

Famílias que tiveram perdas causadas pela Covid-19 contam como estão lidando com a perda. Grupo com dezenas de voluntários ajuda parentes enlutados pelo país.

Em 12 de junho, no Dia dos Namorados, a família deste repórter se reuniu para se despedir do pai, aos 65 anos. Mesmo não sendo morte pela Covid-19, a situação da pandemia impôs apenas 2 horas de velório, com distanciamento social e rostos encobertos por máscaras encharcadas.

Se comparadas com o caso de milhares de parentes pelo Brasil, que sequer puderam ver os pais mortos pelo coronavírus e “blindados” em caixões lacrados, nossas horas se tornaram uma dádiva.

Os efeitos do vírus podem atingir de forma silenciosa alguns e tirar outras vidas de forma repentina. Em casos graves, da noite para o dia, deixando a saudade e o luto para quem fica.

Aos sobreviventes, cabe retomar a vida e lidar com o luto. Segundo a psicóloga Bruna Tabak, uma das voluntárias da Rede de Apoio às Famílias e Amigos de Vítimas Fatais da Covid-19 no Brasil, não há uma receita para superar a ausência.

“Frases como ‘seja forte’ me deixam bastante incomodada, porque sofrer não é sintoma de fraqueza moral. Chorar e sofrer só nos torna humanos. Se você é ser humano, você é frágil”, diz a profissional.

G1 conversou com quatro famílias, filhos e netos, meses depois deles passarem pela perda causada pela Covid-19. Todos tentam seguir em frente com a ausência.

‘Vai ser sempre minha menina’

Em 2001, a dupla Rick & Renner lançou a música “Filha”. A composição é uma declaração do pai à filha, desde o nascimento até o aniversário de 15 anos. A letra, que marcou festas de debutantes Brasil afora, é o refúgio para a jovem Jennifer Lucchetti resgatar memórias de conforto sobre o pai.

O primeiro morto por Covid-19 em Cabreúva (SP) era a última pessoa que a família pudesse imaginar que seria um paciente fatal. Aos 46 anos, Claudir Lucchetti era praticante de motocross, trilhas e não tinha doença pré-existente.

O comerciante ficou internado por 7 dias, mas não resistiu às complicações da doença e morreu no Hospital São Vicente, em Jundiaí (SP), no dia 17 de maio.

“Depois de alguns meses, você aprende a conviver com a saudade. Sempre falo que é uma montanha-russa, porque um dia você acorda bem, vai com a vida normal, mas tem dia que você quer ouvir a voz, mandar uma mensagem. São os dias mais difíceis”, conta a filha, que mora no Canadá.

Claudir Lucchetti, em foto ao lado da filha, morava em Cabreúva (SP) — Foto: Arquivo pessoal
Claudir Lucchetti, em foto ao lado da filha, morava em Cabreúva (SP)

Jennifer se mudou do Brasil em 2003. A primeira vez em que retornou foi quando fez 15 anos. Na época, o pai foi buscá-la no aeroporto.

“Ele colocou para tocar no carro a música do Rick e Renner. Nós choramos. Mesmo aqui, sempre coloco [a música] para me lembrar dele. A gente tenta pensar que ele aproveitou bem a vida e deixou boas memórias. Amava andar de moto, que era a paixão dele. Vamos manter viva a memória e vejo o rostinho dele todo dia no meu celular”, comenta.

‘Há propósito em todas as coisas’

A dona de casa Marli Fruzina, de 56 anos, morreu com Covid-19 em Jundiaí, no dia 20 de maio, depois de 13 dias internada. Viúva há 12 anos, criou os quatro filhos sozinha, trabalhando como empregada doméstica. Marli também tinha três netos.

Antes de ser entubada, a paciente pediu para a médica que desse um recado para a família. A frase ganhou um quadro com detalhes em flores e um coração abaixo, na base do desenho.

“A médica perguntou se ela queria mandar algum recado para nós e ela disse que nos amava muito e que há um propósito em todas as coisas”, lembra a filha Maria Eduarda Santos.

Marli Fruzina (ao meio) morreu com Covid-19 em Jundiaí — Foto: Arquivo pessoal
Marli Fruzina (ao meio) morreu com Covid-19 em Jundiaí

A família conta que a dona de casa sentiu os primeiros sintomas da doença no dia 1º de maio, quando ficou acamada e chegou a sentir melhora no quadro antes da internação. Marli tinha pressão alta e diabetes.

“Agora estamos muito mais unidos, mas a fé que temos em Deus vem nos sustentando a cada dia. A lembrança que nos vem é o caráter dela, a honestidade. Por mais que alguém já tenha lhe feito mal, ela sempre estava lá para ajudar. O sorriso lindo dela era sempre seu cartão de visita.”

‘Muita coisa faz falta’

Em menos de 48 horas, a família de Narcizo Gonçalves da Silva, de Sorocaba, foi da gratidão ao luto. Aos 69 anos, o mecânico morreu pela infecção logo após o filho deixar a Santa Casa da cidade sob aplausos pela recuperação da Covid-19.

No dia 8 de maio a família recebeu uma ligação do mesmo hospital, informando que o pai não tinha resistido à doença. Foi a 25ª morte registrada na cidade, atualmente com mais de 300 óbitos.

“A gente até tenta ter uma vida normal, tenta fazer planos futuros quando tudo isso acabar e levar minha mãe para viajar. Parece que você dá mais valor para a vida e aproveita mais os momentos”, conta a filha Andressa Aparecida Lopes França.

Narcizo foi vítima do coronavírus em Sorocaba — Foto: Arquivo pessoal
Narcizo foi vítima do coronavírus em Sorocaba

A última vez que Andressa viu o pai com saúde foi no aniversário dele, quando reuniu a família e contou as histórias de vida.

“Você nunca acha que vai chegar à sua família”, lamenta.

Meses depois, os filhos estão dando apoio à mãe. Ela não testou positivo para a doença, mas recebe apoio psicológico de todos após a dolorida separação de 40 anos de casamento. Andressa afirma que preferiu não guardar a tristeza para ela e procurou ajuda.

“Nas minhas orações eu agradeço pela minha vida e me pego em algumas vezes agradecendo pela vida do meu pai, porque fazia parte.”

“A ferida fica aberta, mas você tem que procurar ajuda. Eu não fiquei guardando pra mim a tristeza e a mágoa. Tem que pedir ajuda. Não é fácil.”

65 anos juntos

O sorriso largo e o amor pelos livros são as lembranças que a Dona Lena, como era conhecida, deixou para a neta. Ela, bibliotecária, morreu aos 84 anos. Dois dias depois, o marido também foi vitimado pela doença, aos 85. Os dois moravam em Jarinu (SP).

Antes da entrevista, Bruna Guimarães, a neta do marceneiro Moacyr e da bibliotecária Marilena Siqueira Guimarães, pediu alguns dias para falar sobre o avô – a quem considerava pai e amigo.

“Ainda não tivemos coragem de mexer nas coisinhas deles. Então, vamos vivendo um dia de cada vez. Voltar à rotina é difícil. Não ter eles em casa é difícil.”

Dona Lena e o marido, de Jarinu, morreram com Covid-19 — Foto: Arquivo pessoal
Dona Lena e o marido, de Jarinu, morreram com Covid-19

Segundo a neta, o marceneiro costumava ter a rotina interiorana entre a casa e a praça. Quando podia, a pescaria era um hobby. Contudo, passou a sofrer de Mal de Parkinson e teve a mobilidade limitada.

Moacir e a esposa foram casados durante 65 anos. Moravam com um casal de filhos. Duas enfermeiras também frequentavam a residência para ajudar nos cuidados diários, principalmente de Moacir.

“Estou indo visitar com frequência e é ruim demais chegar lá [na casa], e não ter eles. Estamos nos apoiando dia a dia, tentando ficar próximos, mesmo estando longe”, explica a neta.

Ajuda do norte ao sul

Para dar apoio psicológico e espaço para parentes prestarem homenagens para vítimas de Covid-19, uma rede de 280 voluntários espalhados pelo Brasil trabalha desde o começo da pandemia.

Segundo Danilo Cesar, um dos idealizadores, foram feitas mais de 5 mil homenagens para pessoas mortas desde o começo do grupo. Em conjunto com a Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC), foi traduzido do espanhol o “Guia para Pessoas Enlutadas Em Tempos de Covid”.

Formada do Acre ao Rio Grande do Sul, com auxilio de psicólogos e até pesquisadores, Danilo afirma que a rede já ajudou cerca de 4 mil pessoas em luto.

“O pontapé definitivo para a formação da rede se deu quando algumas pessoas próximas a nós perderam entes queridos pela Covid-19. Vimos na prática a diferença que fazia para aquelas famílias, amigos e demais entes queridos a impossibilidade de se fazer os rituais tradicionais de despedida”, relata.

A pesquisadora Elisiana Trilha Castro, da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC), também faz parte da rede. O guia traduzido pelo grupo pode ser conferido na íntegra aqui.

“Logo depois de fazermos dois estudos, fui buscar trabalhos para ajudar no contexto pandêmico. Entrei em contato com o pessoal do Memorial, que cresceu para a ideia da rede”, lembra Elisiana.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html

O contato pode ser feito pela página do Memorial das Vítimas do Coronavírus no Brasil ou pelo site da rede. O interessado em buscar ajuda deve preencher um formulário para o atendimento pode durar até duas horas.

Segundo a psicóloga, cada pessoa supera o luto de uma forma diferente — Foto: Carlos Dias/G1
Segundo a psicóloga, cada pessoa supera o luto de uma forma diferente

‘O luto é uma travessia contínua’

Cerca de 60 profissionais de saúde atuam na rede. Segundo a psicóloga Bruna Tabak, situações que agravam o sofrimento do enlutado são: a possível falta de comunicação entre a família e os médicos na internação, o distanciamento entre a família no momento da morte, a não despedida tradicional, como velório e o último adeus.

“O que escutamos dos enlutados que perderam pais, avôs e avós é que a revolta não é apenas da morte em si, mas também o processo de morrer com as restrições impostas aos rituais de despedida. A gente vê como é desastrosa a falta de orientações à equipe de saúde sobre a importância de uma comunicação durante a internação. Uma boa comunicação entre equipe e família tem efeitos de intervenção precoce com lutos mais complicados”, ressalta.

Segundo a psicóloga, o período do luto é uma fase em que cada pessoa encara de uma maneira diferente.

“O luto é uma reação normal, esperada e prevista quando a gente perde um ente querido. A gente não diz ‘superar o luto’ porque não se trata de um obstáculo. O luto é uma travessia contínua, sem um fim determinado. É um processo contínuo, com altos e baixos, um esforço perene para encontrar algum aconchego e sentido para seguir adiante.”

A primeira intervenção da rede foi o memorial, para dar rosto e respeito à biografia de cada uma das vítimas. O espaço, segundo a especialista, tem efeito terapêutico para quem lê e quem escreve: “Se abraçam virtualmente com palavras de apoio”, completa.

Os profissionais de saúde que pretendem atuar na rede podem fazer o cadastro online e gratuito. O tipo de acompanhamento é acordado entre psicólogo e paciente. O psicólogo interessado passará por uma entrevista.

Em algumas cidades, parentes podem acompanhar de fora do cemitério o sepultamento — Foto: Carlos Dias/G1
Em algumas cidades, parentes podem acompanhar de fora do cemitério o sepultamento

FONTE: G1

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