Arroz, feijão com bacon, fígado acebolado e salada de repolho. Além de uma combinação que marca presença diariamente na mesa de milhões de brasileiros, foi esse o cardápio vencedor do primeiro episódio da nova temporada do Masterchef Brasil.
Devido à pandemia, o programa mudou seu formato e passou a premiar um cozinheiro por episódio, com um elenco diferente a cada semana. Negro e morador da Brasilândia, na periferia da zona norte de São Paulo, Hailton Arruda, de 29 anos, levou o troféu para casa ao vencer uma prova em que o desafio era cozinhar com ingredientes de uma cesta básica.
Além da polêmica gerada pelo novo formato — que desagradou parte dos telespectadores —, o prato também foi condenado nas redes sociais por sua simplicidade. “Pouco criativo”, “limitado”, “cotidiano” e “meia boca” foram os termos usados para definir o arroz, feijão e fígado de Hailton.
O diagnóstico de que o prato não é digno de vencer uma competição gastronômica seria também fruto de um preconceito dos brasileiros contra sua própria culinária?
Para a antropóloga e professora da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) Paula Pinto e Silva, sim. “Fazer o que ele fez, nesse tempo, nesse contexto, um prato super saboroso, é tão complexo quanto qualquer prato francês. A decisão dos jurados significa que eles sabem dessa complexidade. Inclusive é muito mais fácil fazer um risoto do que arroz, feijão, fígado acebolado e salada.”
Silva também destaca que a culinária brasileira nunca chegou a ser valorizada durante nosso processo de colonização.
“Trazemos o nosso complexo de vira-lata para a comida. Nunca tivemos essa culinária como algo de que nos orgulhamos, até porque quem produzia a comida doméstica no Brasil eram escravizados — e hoje são, em parte, empregadas domésticas e cozinheiras. No contexto brasileiro, essa comida tem uma característica: ser muito igualitária. É o contrário do que somos, ou do que pensamos que somos.”
A gastronomia como arte da preparação de pratos refinados só chegou de fato ao Brasil entre os séculos 18 e 19, quando a família real portuguesa desembarcou no Rio de Janeiro, trazendo ingredientes e cozinheiros europeus. “Ali se estabelece uma outra comida, considerada mais digna de ser exaltada. Nos cardápios do século 19, ninguém servia comida brasileira na hora do banquete. Serviam pratos à moda francesa, inglesa?”
Em seu “História da alimentação no Brasil”, o historiador e antropólogo Câmara Cascudo (1898-1986), um dos principais estudiosos do folclore e dos hábitos alimentares brasileiros, conta uma anedota sobre Alberto Maranhão, governador do Rio Grande do Norte no início do século 20, que ilustra a importância dada historicamente à gastronomia francesa no Brasil — e o desprezo das altas classes pela comida nacional.
“Um prato levado à mesa em honra cerimoniosa devia ter nome francês ou não ser levado. Alberto Maranhão afirmava ter todas as coragens como governador, exceto apresentar um menu em português. Quando, num almoço aos visitantes eminentes, apareciam frutas brasileiras, eram rigorosamente ‘les fruits tropicaux’ (…) Em francês, tudo ficava bonito.”
FONTE: YOL