Porandubas Políticas – nº 5.821 – Gaudêncio Torquato

Abro a coluna com monsenhor Elesbão.

As três pessoas

No confessionário, Monsenhor Elesbão era rápido. Não gostava de ouvir muita lengalenga. Ia logo perguntando o suficiente e sapecava a penitência que, sempre, era rezar umas ave-marias em louvor de N. S. do Rosário. Fugindo ao seu estilo, certa feita ele resolve perguntar ao confessando quantos eram os mandamentos da lei de Deus.

– São 10, Monsenhor.

– E quantos são os sacramentos da Santa Madre Igreja?

– São 7, Monsenhor.

– E as pessoas da Santíssima Trindade, quantas são?

– São 3, Monsenhor.

Monsenhor, notando que o confessando só sabia a quantidade, pergunta rápido:

– E quais são essas pessoas?

A resposta encerrou a confissão:

– As três pessoas são o senhor, o Dr. Didico e o Dr. Zé Augusto.

(Historinha contada por José Abelha em A Mineirice).

  • Parte I – O Brasil de Lula

A combinação com os russos

A governabilidade do país abre a hipótese de que depende de um sistema de forças capaz de dar suporte ao governo. Significa dizer que não se governa sem o aval do Parlamento. Esse é um pequeno lembrete aos tortos de visão e cabeça, que acreditam ser possível a um chefe de Estado dirigir o país sem o endosso dos “russos”, ou seja, dos nossos representantes no Parlamento. Portanto, não enxerguem um Brasil comunista, socialista ou ditatorial, como se ouve aqui e ali pela boca de radicais empedernidos. A não ser que o dirigente manobre na direção de um golpe de Estado. A governabilidade exige uma combinação com os “russos”, lembrando a engraçada tirada de Garrincha.

A historinha

Para quem não se lembra, a lenda. Na Copa do Mundo de 1958, na Suécia, o técnico Vicente Feola explicou na prancheta a tática para derrotar a seleção da antiga União Soviética: Nilton Santos lançaria a bola da esquerda do meio de campo para a direita do ataque nos pés de Garrincha, que driblaria três adversários e cruzaria para Mazola cabecear na grande área e fazer o gol. Com ingenuidade ou ironia, não se sabe, o nosso Mané Garrincha perguntou: “Seu Feola, o senhor já combinou com os russos?”. A situação nunca ocorreu, mas faz parte do imaginário social.

Putin, o russo

O Brasil de Lula tem russo na parada. E não é apenas o Vladimir Putin, para o qual a Advocacia-Geral da União preparou um parecer, a ser encaminhado ao Tribunal Penal Internacional de Haia, com o objetivo de permitir que venha ao Brasil, em novembro, para a cúpula do G20. O governo brasileiro não cita diretamente Putin no texto, mas faz referência a um cenário que se encaixa na situação atual do líder russo: ele é alvo de um mandado de prisão expedido pelo TPI, acusado de ter permitido que ocorressem crimes de guerra no conflito com a Ucrânia. Como o Brasil é signatário do Estatuto de Roma, que criou o TPI, o país em tese está obrigado a prender Putin caso ele desembarque em território nacional. A Rússia assinou o Tratado em 2000, quando foi criado, mas saiu dele em 2016. Os russos de Lula são os nossos deputados e senadores.

A base “russa”

No Congresso Nacional, a base “russa” do governo conta com 11 partidos e mais de 350 deputados, segundo o blog Poder360, de Fernando Rodrigues. A questão é a fidelidade. Muitos não votam com o governo, apesar de usar verbas destinadas a seus redutos eleitorais. O governo pode ter algo próximo aos 250 parlamentares, um número que não basta para aprovar PECs, por exemplo. Lula abriu, há tempos, o balcão de trocas, mas seu principal cobrador é Arthur Lira, que preside a Câmara Federal com as garras de um leão faminto. O leão quer abocanhar as maiores fatias. Para dividir com os leões e leoas do seu território, o chamado Centrão.

A descida de Lula

Com todos esses russos no jogo, por que Luiz Inácio desce o despenhadeiro da imagem? Vamos à análise, com a observação de que já tratei de alguns aspectos em colunas anteriores. Mas, aproprio-me do ditado latino – quod abundant non noscet (o que é demais não prejudica).

1. Promessas

Com tantas promessas e projetos de campanha a cumprir e realizar, não é de todo inviável a observação de que Lula acaba cedendo muito para poder governar, fato que transforma seu governo em um queijo suíço, com buracos aqui e ali, ou numa carranca franksteniana. Todo cuidado é pouco para os cirurgiões plásticos de plantão. Os pacotes governamentais, de tão batidos pelos governos do PT, mais parecem hoje uma obrigação do Estado. Não servem mais como pincel para pintar as paredes corroídas da casa.

2. A colcha de retalhos

Os programas e projetos mais parecem pedaços de cores diferentes numa colcha de retalhos. Faltam unidade, harmonia estética, integração de propósitos. Ao lado da velha politicagem: ministros mandando em verbas de outras Pastas, em clara interpenetração de funções e mandos. A imagem governamental se estraçalha. Vejamos o que diz Tales Faria no UOL: a influência de Alexandre Padilha sobre o Ministério da Saúde teve um alto custo. Arthur Lira, que cobiçava o controle do órgão, dificultou o diálogo entre o ministro das Relações Institucionais e o Centrão, o que comprometeu a atuação de Padilha no Congresso.

3. As falas de Lula

Falem mal do Lula, mas não sobre sua coerência. Trata-se de um dirigente fiel aos seus valores. Lula é PT. E faz parte do clube dos fundadores. Não pode negar por completo seu discurso de ontem. Pode, até, arrefecê-lo, não, negá-lo. O “João Ferrador” deu lugar ao “Lulinha, Paz e Amor” e também ao “Lula Pragmático”. Esta última vestimenta é a do governante que enxerga desvios e rotas do caminho. Escolhe as melhores opções. Ou seja, veste-se de acordo com os costumes da modernidade. Sem abandonar vieses do passado, sempre presentes nas falas de palanque.

4. A fulanização

No atual sistema eleitoral proporcional, que data de 1950, o fenômeno da fulanização tomou corpo, contribuindo, por meio das listas abertas, para instalação do voto “salada mista”, pelo qual o eleitor tem liberdade de escolher candidatos, em um visível enfraquecimento das estruturas partidárias. Isso porque os partidos, com raras exceções, além de não possuírem controle sobre os perfis e as chances de seus candidatos, passam a presenciar, estáticos, uma feroz disputa. Um processo de canibalização recíproca. Ora, esse fenômeno enfraquece a capacidade do governo em negociar com os partidos.

5. Está longe a forte democracia

Para coroar o ritual de personalização política, muitos eleitos acabam trocando a sigla, contribuindo, assim, para o estiolamento partidário. As janelas que se abrem para a troca de partidos estão na índole do “jeitinho brasileiro”. Quem controla com mais rigidez o rol de candidatos, como o PT, compensa a dispersão das listas abertas e se fortalece. Maurice Duverger, chamando a atenção para tal problema, chegou a afirmar que “o Brasil só será uma grande potência no dia em que for uma grande democracia. E só será uma grande democracia no dia em que tiver partidos e um sistema partidário forte e estruturado“. Estamos muito longe do ideal do pensador francês.

6. Não há para onde correr

Sob o presidencialismo, as tensões se acirram entre os Poderes e o balcão de recompensas fica sempre lotado. Ademais, a pulverização partidária dá origem a outro fenômeno – a cissiparidade – ou seja, a divisão de um partido em dois, como foi o caso do PSDB, que saiu de uma costela do PMDB, e o PDT de uma banda do velho PTB getulista. A partir daí, a proliferação de novas legendas passa a povoar a cultura política. Constatada a situação e explicada sua natureza, resta aduzir que Lula se depara com enormes dificuldades para governar. Deve transigir cada vez mais. Não há para onde correr.

  • Parte II

Raspando o tacho

– O ciclo pré-eleitoral se abre com os primeiros discursos ácidos dos candidatáveis. E com as primeiras viagens de Lula, a começar pelo Rio e Nordeste (Pernambuco e Ceará).

– A meta é se aproximar do eleitor em eventos para tentar desfazer o resultado das recentes pesquisas de opinião.

– Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, tem sido aconselhado a não fechar posição sobre o patamar presidencial de 2026. Ronaldo Caiado, governador de Goiás, também quer ser uma alternativa da direita.

– A Empresa Brasileira de Comunicação vai inserir forte dose de conteúdo governamental em sua programação. Governo quer usá-la como tuba de ressonância de propaganda eleitoral.

– O TSE se encontra diante de um gigantesco desafio: domar o dragão das fake news que já começaram a jorrar nas redes sociais nessa abertura do ciclo pré-eleitoral.

– Os militares estão satisfeitos com Lula no que diz respeito ao seu comportamento sobre os 60 anos da instalação da ditadura.

– Nicolas Maduro, depois da fustigada que deu em Lula – o rebate sobre o processo eleitoral antidemocrático na Venezuela – agora quer amaciar o velho amigo. Uma no cravo, outra na ferradura.

– O mundo continua a ver o horror das guerras no Oriente Médio e na Ucrânia/Rússia. Um desfile de destroços e cadáveres.

– O Brasil mostra um avanço – pequeno, porém notável – na área das ciências exatas. Elevação do interesse do alunato pela matemática.

– Nos EUA, Joe Biden e Donald Trump se engalfinham. O republicano é um oportunista. E tem mais chances, hoje, de levar a melhor. Hoje, repito.

– Erdogan começa a descer o despenhadeiro na Turquia. Há 20 anos no poder, o presidente Recep Tayyip Erdogan sofre sua maior derrota nas urnas nas eleições municipais e estaduais realizadas no domingo. A oposição obteve vitória nas duas principais cidades turcas: a capital, Ancara, e Istambul, cidade que Erdogan foi prefeito e onde começou sua carreira política.

– Atenção, candidatáveis. Lembrem-se de minha velha e sempre lembrada equação: BO+BA+CO+CA – Bolso cheio, Barriga satisfeita, Coração agradecido, Cabeça elegendo dirigentes.

Fecho a coluna novamente com o monsenhor Elesbão.

No confessionário

Monsenhor Elesbão estava esgotado de tanto ouvir pecados, ou, como dizia, besteiras. Decidiu moralizar o confessionário. Afixou um papelão na porta da Igreja, dizendo:

O Vigário só confessará:

2ª feira – As casadas que namoram

3ª feira – As viúvas desonestas

4ª feira – As donzelas levianas

5ª feira – As adúlteras

6ª feira – As falsas virgens

Sábado – As “mulheres da vida”

Domingo – As velhas mexeriqueiras

O confessionário ficou vazio. Padre Elesbão só assim pode levar vida folgada. Gabava-se:

– Freguesia boa é a minha… mulher lá só se confessa na hora da morte!

(Leonardo Mota em seu livro Sertão Alegre)

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Gaudêncio Torquato jornalista, consultor de marketing institucional e político, consultor de comunicação organizacional, doutor, livre-docente e professor titular da Universidade de São Paulo e diretor-presidente da GT Marketing e Comunicação.

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A coluna Porandubas Políticas, integrante do site Migalhas (www.migalhas.com.br), é assinada pelo respeitado jornalista Gaudêncio Torquato, e atualizada semanalmente com as mais exclusivas informações do cenário político nacional.


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