No dia mundial da água, o diretor geral das Nações Unidas alertou para o fato de estarmos drenando o sangue vital da humanidade, comparando o líquido preciso da terra com a seiva que percorre nossas veias para garantia da vida.
A fala, dita na abertura na Conferência Internacional da Água, ganhou repercussão mundial e alcançou o objetivo de causar reflexões.
Refletindo sobre o sábio juízo da autoridade internacional, trazemos a comparação para o cotidiano do nosso velho Vale do Paranapanema, que parte de espigões a pouca distância do único rio não poluído do Estado de São Paulo, descendo lentamente com seus inúmeros córregos e nascentes que se assemelham ao sistema circulatório de um corpo vivo.
Assim como a saúde das veias e do sangue tem meios seguros de avaliação, nosso sistema hídrico também merece um diagnóstico preventivo ou, quem sabe, curativo.
Aqui os pioneiros chegaram em meados do século 19 atraídos pela fertilidade do solo, mas muito também pela abundância das águas que entrecortam pequenos vales de topografia com pouca ondulação e que se mantinham puras e cristalinas com a proteção da densa floresta de Mata Atlântica formada a partir do embrião do Cerrado presente no espigão principal.
Como o sistema circulatório de um corpo jovem, as águas eram correntes como sangue em veias grossas e fortes, percorrendo com absoluta pureza e sem obstáculos o caminho ao grande coração do vale, batizado Rio Paranapanema.
As águas, assim como o sangue nutre o corpo, serviram como alimento e moradia a centenas de espécies de peixes e de garantia à vida de humanos e animais, selvagens, silvestres e domésticos, criando um complexo ecossistema equilibrado e autossustentável, cuja harmonia em concepção natural encantava e seduzia ainda mais humanos que, ditos civilizados, abriram caminhos com picadas na floresta e construíram pontes sobre os rios.
Assim surgiram as grandes clareiras nas matas, que se transformaram em vilarejos, depois cidades e até quase metrópoles, cujos ocupantes aproveitaram a madeira das arvores para suas moradas e passaram a produzir em quantidade os detritos e dejetos que desapareciam nas correntezas borbulhantes das águas até então translúcidas de pureza intacta.
Junto vieram as lavouras, que dependendo apenas das oscilações da natureza incerta, passaram a utilizar elementos químicos estranhos ao ecossistema intocado, como se usa as drogas para o falso bem estar.
A agricultura despertou a indústria, que usou a força das águas desviadas de seus cursos para mover rodas e moinhos, criando pequenas barreiras para formação de lagos, comparadas às obstruções das enfermidades circulatórias que elevam a pressão arterial, assim como as águas represadas forçam as barreiras artificiais.
Os resíduos despejados nas águas, cada vez menos orgânicos e mais químicos, se assemelharam às impurezas que comprometem a oxigenação do sangue humano e causam inúmeras enfermidades.
As águas já poluídas se comparam ao sangue impuro causador das tromboses de coágulos. Sujas, sem nutrientes e minerais, perdem a condição de potabilidade e os rios ficam como corpos anêmicos, perdendo a vitalidade natural.
Sem florestas a protege-las, as nascentes desaparecem terra adentro, enquanto a impermeabilidade do solo transforma filtros naturais em enxurradas que causam as enchentes destruidoras, como as hemorragias nos órgãos doentes.
Nosso abundante sistema hídrico, uma vez formado pelas centenas de riquíssimas microbacias, muitas hoje já moribundas, escondidas sob canais ou desaparecidas em aterros de edificações, entra em estado terminal necessitando de filtros, como os rins purificam o sangue; de mais limpeza e oxigênio, como o ar puro garante a força da respiração; da proteção das florestas, como os anticorpos protegem as células; de abolir os agrotóxicos, como se deve evitar o álcool que compromete o fígado; sob pena severa de haver o colapso final do sistema hídrico, exatamente como o sistema circulatório humano pode entrar em falência.