Show das ambulâncias

Claudio Pissolito

 

 

Passar algumas horas da manhã no Hospital das Clinicas de Marília, referência para dezenas de cidades da região, é uma experiência interessante de muitas revelações e conclusões sobre o sistema público de saúde. Com o mínimo de observação e razoável senso crítico, é possível identificar as muitas mazelas e as poucas virtudes produzidas por um orçamento milionário. Gastar é preciso.

A falta de cuidado já se revela no agendamento de centenas de pacientes de primeira consulta, os de retorno e também aqueles de tratamento adiantado, todos para o mesmo horário, às 7 da manhã. A medida favorável aos médicos e funcionários, é péssima para os resignados que chegam transportados pelos serviços municipais, pois o atendimento é feito pela ordem de chegada. Madrugar é preciso.

A entrada aos consultórios e ambulatórios acontece pela mesma rampa, onde passam doentes, acompanhantes, cadeiras de rodas, muletas e macas. Em tempo de contaminação pelo Novo Coronavírus, H1N1 e afins, todos se reúnem na mesma sala com um número de senha. Atenção é preciso.

A espera não é longa, mas de bastante constrangimento para os acamados em estado grave, que despertam a curiosidade e a piedade alheia, e também dos cadeirantes, que ficam estacionados nos cantos para não atrapalhar o fluxo até os guichês de atendimento e à única porta que recebe todos os casos e os descasos. Desencabular é preciso.

O desembarque de muitos doentes mostra um pouco das virtudes do sistema, representadas pelo trabalho prestativo voluntário da maioria dos motoristas que se transformam em equipe de apoio pela prática diária e o desejo de desocupar rapidamente os veículos. Cochilar é preciso.

No final da manhã, médicos, professores, alunos e funcionários começam a se preparar para o sagrado almoço, enquanto a maioria dos doentes, pacientes ou impacientes, matam a fome com os lanches das sacolas plásticas, nas barracas de pastéis e caldo de cana ou enfrentam uma longa viagem de volta de barriga vazia. Resiliência é preciso.

Nas ruas laterais, nos estacionamentos públicos e privados, debaixo das árvores ou do sol quente, ficam os automóveis daqueles que conseguiram chegar ao destino da esperança da cura por meios próprios e também as ambulâncias, as vans e veículos oficiais de vários modelos que transportam os dependentes do sistema público. Filhos, pais, irmãos, adultos, crianças e idosos aguardam com paciência e esperança pelos resultados dos exames e das consultas. Crer é preciso.

No movimento dos automóveis que congestionam cada espaço e dos pedestres que circulam pelas calçadas desniveladas, esburacadas e perigosas, destacam-se as ambulâncias de muitas cidades que ostentam as cores, as logomarcas e as frases de cada prefeito de plantão no mandato. Algumas são sóbrias, com poucas informações, quase sem nunca faltar o período da gestão, enquanto a maioria se transforma em painel de propaganda. O que tem de mais curioso, interessante ou vergonhoso são as frases de cada cidade.

Muitas logomarcas são de mau gosto, coloridas e com ilustrações bastante primárias, mas os slogans de cada administração tentam transmitir uma mensagem de esperança, de orgulho ou de descrédito aos adversários políticos, pois os “Novos Tempos” e o “Junto com o Povo” são recorrentes, indicando que, em todas as cidades, os demais são tratados com o devido desdém que o inimigo merece.

As ambulâncias de Ourinhos, várias, exibem frases relacionadas ao centenário da cidade, comemorado em 2018, mas sem perder a chance de exaltar o trabalho da gestão em andamento, que faz o mesmo trabalho dos mandatos passados, mas considerado muito melhor que o anterior. Uma delas exibe o brasão da cidade e a logomarca do centenário, de gosto duvidoso, sublinhado pela frase “Construindo um novo futuro”, indicando obviamente que o futuro dos outros já são velhos. Recado dado.

A novíssima ambulância de Ubirajara, adquirida com recursos da Secretaria Estadual da Saúde, tem como marcas a bandeira da cidade, em verde e vermelho, com o brasão bem no meio, ao lado de uma logomarca criada a partir de desenhos infantis com morros, sol e céu mais ou menos estilizados, ostentando em vermelho o glorioso nome Ubirajara, sobre uma frase marcante: “Nossa Saúde, Nosso Orgulho”. O que se deduz é que os demais veículos levam frases diferentes, como “Nossa Educação, Nossa Orgulho” ou “Nossa Segurança, Nosso Orgulho”. Sobrou orgulho e faltou espaço, pois a ambulância é minúscula e mal carrega alguém de estatura média.

A ambulância da pequena Lupércio é grande, uma Van com vários lugares, mas sem deixar de exibir um belo logotipo temporário, parece que agora até proibido pela Justiça, com desenhos que tentam mostrar árvores, lavouras, casas e indústrias, provavelmente tudo o que falta na cidade. Abaixo vem a criativa frase: “mais que uma cidade NOSSA CIDADE”, assim mesmo, em caixa alta (letras maiúsculas), seguida da repetida data ADM 2017/2020. O próximo prefeito terá de aposentar ou repintar o enorme veículo, para não passar recibo ao atual.

A ambulância de Quintana é pequena e discreta, assim como o emblema que carrega na lateral. O criador da arte tentou mostrar um casal, de homem e mulher, em passos de dança, mas entre eles aparece o nome da cidade, seguido da data do período da administração. Para finalizar, vem a cereja do bolo: “Governo de Quintana: Fazendo o melhor por você!” Quem poderia imaginar que a intenção era mesmo fazer o melhor?

O também enorme veículo de Ocauçu, pois parece que quanto menor a cidade maior é o automóvel, leva na traseira o desenho bonito de um pássaro, provavelmente um beija-flor, estilizado em linhas coloridas e carregando um ramo de folhas que parecem de oliveira, não se sabe o motivo. Acima da repetida Administração 2017/2020 aparece o nome da cidade em maiúsculas, seguida da frase grafada entre aspas: “CIDADE AMIGA, UMA NOVA ERA.” São dois recados nada subliminares na mesma linha, pois diz que a cidade só é amiga graças à nova era do atual mandato, é claro.

A ambulância curta e alta, quem sabe para transportar doentes grandes em pé, que chegou em Marília direto de Herculândia, provavelmente outra grande metrópole regional, é um pouco mais discreta que as demais, mas não deixa de levar uma cor diferente, o verde, provavelmente da campanha do atual prefeito, e a simbólica e inimaginável frase “Trabalhando para o Povo!”, com exclamação e tudo. Será mesmo?

Outra Van, a de Maracaí, também mostra a recorrência das criativas e maldosas frases usadas como muleta política com o erário. Ainda que com certa discrição, o veículo ostenta, bem próximo ao para-choque traseiro, duas linhas em verde que abrigam o brasão da cidade e a palavra MARACAI, em negrito e maiúsculas, sobre uma enigmática frase: “AÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO”. Agora já sabemos que frases inúteis em ambulância é uma ação do atraso.

A gloriosa Florínia, uma pequena cidade do litoral da beira do Panema, também foi representada no desfile das ambulâncias naquele fatídico dia em que alguém desocupado resolveu observar como se usa e se identificam os veículos de transporte de pacientes. Como esperado, a logomarca é a tentativa de estilização de um enorme sol com cinco raios sobre linhas curvas em azul e verde, que lembram as águas do mar, ou do rio, como é o caso em questão. Abaixo do nome da cidade muito bem destacado e devidamente sublinhado, aparece a frase “Em um Novo Tempo”. Pronto, foi desqualificado o tempo do outro prefeito e indicado o período da gestão atual logo em seguida.

A ambulância de Salto Grande, ou Baita Pulo, como a cidade é conhecida no idioma caipira, é bem velhinha, mas conseguiu chegar antes das sete no ambulatório com o seu ou os seus pacientes, pois algumas servem a várias pessoas que são transportadas de forma insegura ou, quem sabe, absolutamente irregular. Provavelmente não seja o caso da ambulância de Salto Grande, mas muitas cidades adaptam veículos com maca para levar passageiros. Tudo errado. O que foi diferente é que o slogan de Salto Grande parece ser fixo, independente do mandato, mas está lá: “Cidade Praia”.

A ambulância de Fernão, que ninguém imaginava que sequer existia e que muito menos tivesse frota, tem uma marca diferente, com desenho que parece uma rodovia estilizada e cuja faixa branca central leva para uma enorme estrela amarela. Abaixo, aparece bem grande o nome da pequena FERNÃO, sobre uma frase obra prima do marketing municipal: “Pequena, mas atrevida”. Atrevidos mesmo foram o criador da marca, o prefeito que aprovou e o motorista da ambulância que tem coragem de circular com o veículo antigo.

Para concluir esse importante estudo da propaganda pessoal e partidária, ou de mandatos, temos a ambulância de Bora, a menor cidade em população do Estado de São Paulo e a segunda menor do Brasil, quem sabe do Planeta. O autor da arte criou uma linda abelhinha amarela com formato humano, que parece uma mocinha, e que aponta para o pomposo nome escrito em amarelo BORA, sobre uma faixa preta em que aparece em letras vazadas: “Todos por um futuro melhor”. Todos quem, quantos?

 

Claudio Pissolito é jornalista e mantém um Blog no site jornaldacomarca.com.br 

 

 

 

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