Artigo do decano do TCE – Tribunal de Contas do Estado de São Paulo -, conselheiro Dimas Ramalho, cujo conteúdo completo pode ser conferido abaixo deste editorial do JC, alerta para o fenômeno do crescimento dos repasses públicos às entidades do terceiro setor, as chamadas ONGs, iniciado em meados da década de 1990 e que continua se intensificando.
A preocupação do conselheiro é quanto à dificuldade em fiscalizar as organizações que assumem o controle de grandes volumes de recursos que, apenas em 2023, representaram 40,8 bilhões transferidos pelos governo estadual e municipais, sem contar a cidade de São Paulo.
Segundo o conselheiro, a fiscalização do emprego dos recursos, assim como das atividades exercidas, para fiel cumprimento dos contratos, não cabe apenas aos Tribunais de Contas, mas também aos municípios que têm o dever de fazer o trabalho por meio do controle interno e, assim, cumprir o que determina a Constituição Federal e o Marco Regulatório do Terceiro Setor.
O alerta feito por meio do artigo mostra que existe preocupação do Tribunal quanto à fiscalização das verbas repassadas, assim como pela prestação do serviço de maneira correta, proba e integral, cumprindo o acordado com as prefeituras e oferecendo atendimento digno à população.
“…o ordenador responsável não se livra do encargo e muito menos das consequências.”
A utilização de organizações sociais para a execução de serviços em setores essenciais da administração pública municipal, como a saúde, a educação, a coleta e reciclagem de lixo, a cultura e também eventos, é uma forma de terceirização de serviço, mas não de terceirizar responsabilidade.
Afinal, o recurso público transferido a particulares por conta de qualquer atividade deve ser muito mais vigiado, mais cobrado em contrapartida e exigido em qualidade, uma vez que o ordenador responsável não se livra do encargo e muito menos das consequências.
Junto com os repasses anuais ou mensais de verbas às instituições do terceiro setor, foi criado também o estranho instituto da emenda parlamentar impositiva, pela qual o vereador indica a entidade beneficiária do recurso, muitas vezes mais por afinidade ou pelo interesse político do que pela real necessidade.
Diante da cada vez maior circulação de verbas públicas junto às entidades privadas, sem fins lucrativos, cabe ao poder público municipal exercer maior controle e fazer mais exigências, uma vez que fica muito claro que o Tribunal de Contas observa os casos e que, muito provavelmente, deverá impor sanções àqueles que falharem nesta obrigação.
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As prefeituras e a fiscalização do terceiro setor
Apenas em 2023, setor público paulista transferiu R$ 40,8 bi a entidades
Dimas Ramalho
Em meados da década de 1990, foram lançadas as bases da reforma do Estado brasileiro, marcado por ineficiências e excessiva burocratização. Em linhas gerais, esse projeto buscava adaptar e transferir os conhecimentos gerenciais desenvolvidos no setor privado para a esfera pública, a fim de tentar aumentar a capacidade estatal de governar com eficácia e qualidade.
Um dos elementos-chave dessa mudança de paradigma foi a inserção do terceiro setor no âmbito dos serviços públicos essenciais e não exclusivos, como saúde, educação, cultura e tecnologia. O modelo se expandiu rapidamente. Hoje, as organizações da sociedade civil atuam nos três níveis de governo e ocupam um espaço significativo nas mais diversas áreas.
Esse crescimento tornou a análise dos repasses públicos para as entidades do terceiro setor uma das atribuições mais relevantes dos Tribunais de Contas. Os valores envolvidos falam por si. Tomando apenas o estado de São Paulo, o governo estadual e as prefeituras –com exceção da capital– transferiram, em 2023, nada menos que R$ 40,8 bilhões às organizações privadas sem fins lucrativos.
A fiscalização dessas atividades, contudo, não cabe apenas aos Tribunais de Contas. Os municípios têm um papel tão ou mais importante a exercer, por meio do controle interno. Tal dever é consagrado em uma série de leis, da Constituição Federal ao Marco Regulatório do Terceiro Setor.
Em outras palavras, se um governante decide executar determinada política pública por meio do terceiro setor, ele tem a obrigação legal de criar instrumentos que garantam que os recursos serão aplicados conforme os termos pactuados.
O que se observa no dia a dia do Tribunal de Contas do Estado São Paulo (TCESP), porém, é que muitas prefeituras têm, no mínimo, negligenciado essa obrigação. Embora os mecanismos de vigilância interna até existam no papel, com frequência servem apenas para inglês ver. Assim, a Corte de Contas, que deveria ser o último elo da cadeia de controle e fiscalização, não raro se converte no único.
São costumeiros os casos de falhas nas prestações de contas das entidades. O resultado se vê nas reiteradas reprovações de parcerias, que terminam por gerar multas e até a devolução dos recursos. Entretanto, por mais que o tribunal cumpra a sua função, quando se atinge esse ponto, o estrago muitas vezes já está feito. Os serviços essenciais que não foram prestados corretamente, a política pública que deveria ter sido implementada e não foi –nada disso pode ser reparado.
Em 2022, uma operação conjunta do TCESP, do Ministério Público e do Ministério Público de Contas analisou 67 parcerias firmadas na área da saúde com municípios e o governo estadual, totalizando cerca de R$ 6,7 bilhões. A fiscalização apontou problemas em nada menos que 60% delas, e recomendou a devolução de quase R$ 70 milhões.
Nas sessões semanais do tribunal, nos deparamos com inúmeros casos em que gestores públicos emitem pareceres avalizando gastos impróprios, sem qualquer relação com o objeto da parceria, quando não imorais ou ilegais. Em processos relacionados a contratos de gestão de unidades de saúde, as auditorias frequentemente encontram pagamentos de serviços e horas extras que extrapolam os limites do tempo e do espaço.
Há também situações em que a administração pública simplesmente distorce a realidade. Recentemente, o TCESP foi induzido a erro por um parecer de uma prefeitura, que afirmou não ter recebido a prestação de contas da entidade contratada. Isso gerou sanções que depois tiveram de ser anuladas em ação de revisão, para que não se penalizasse a organização social injustamente. A lista de problemas poderia se prolongar.
Já está mais do que na hora de mudarmos esse estado de coisas. Para isso, é crucial que os prefeitos que assumirão no ano que vem estejam mais comprometidos com o dever de fiscalizar as entidades do Terceiro Setor, como determina a lei. A população e os cofres públicos agradecem.
Dimas Ramalho é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.