Abro a coluna com a fala do candidato a prefeito, em tempos idos, em uma cidade do Ceará.
Meu povo e minha pova
Parece absurda, mas é verdadeira. Deixamos de dar os nomes para evitar constrangimentos às famílias. Um ex-prefeito de Aracati, cidade litorânea do Ceará, em comício animado, gritou no palanque: “Meu povo e minha pova. Vou ser reeleito prefeito de Aracati com minha fé e as fezes de vocês“. E foi.
- Parte I
A primeira parte da coluna procura mostrar os dribles da política. Valho-me de dois livros.
Manual dos inquisidores e breviário dos políticos
O livro “Manual dos Inquisidores” é um relato da crueldade da igreja nos tempos da Inquisição. Um pesadelo. Foi escrito pelo dominicano Nicolau Eymerich, que nasceu em 1320, em Gerona, reino de Catalunha e Aragão. Trata-se de um dos primeiros livros a serem impressos, em 1503, em Barcelona. Mas o livro foi escrito em 1376, em Avinhão, quando o frei estava no exílio. Foi revisto e ampliado por outro frade, Francisco de La Pena, em 1578. Trata-se de minuciosa coletânea a respeito de heresias, a lógica inquisitorial, os truques, a pressão dos inquisidores, os indícios para reconhecimento dos hereges.
Dez truques
Os dez truques dos hereges para responder sem confessar
(Explico: a escolha desse roteiro tem o propósito de mostrar como alguns políticos usam artifícios semelhantes em sua fala cotidiana.
1. A primeira consiste em responder de maneira ambígua.
2. O segundo truque consiste em responder acrescentando uma condição.
3. O terceiro truque consiste em inverter a pergunta.
4. O quarto truque consiste em se fingir surpreso.
5. O quinto truque consiste em mudar as palavras da pergunta.
6. O sexto truque consiste em clara deturpação das palavras.
7. O sétimo truque consiste numa autojustificação.
8. O oitavo truque consiste em fingir uma súbita debilidade física.
9. O nono truque consiste em simular idiotice ou demência.
10. O décimo truque consiste em se dar ares de santidade.
Com esses truques, os hereges tentavam driblar respostas ao inquisidor.
Matreirice
Alguns políticos brasileiros são conhecidos por sua matreirice na técnica da entrevista. Respondem apenas aquilo que querem. O modelo mais citado para este caso é o ex-governador e ex-prefeito de São Paulo, Paulo Maluf. É conhecido pela arte de dizer o que não foi perguntado e não dizer o que todos querem ouvir.
Embasbacado
No início de minha carreira profissional, em Recife, na Sudene, perguntei a Roberto Campos, ministro do Planejamento do presidente Castelo Branco, se sua estratégia não era o de pulverizar as verbas que, na época, em 1965, o governo tinha para aplicar na região Nordeste. O conceito de pulverização era a distribuição das verbas, de maneira franciscana, um pouquinho a cada Estado, uma migalha, o que poderia não gerar os resultados desejados. Contestador, dialético, Bob Fields (como era conhecido), pegou o foca (eu mesmo) de surpresa: “o que senhor entende por pulverização“? O inquisidor era eu, mas o herege mudou o curso da inquisição. Exemplos prontos do segundo e terceiro truques dos hereges. A resposta que ele daria estava amarrada à condição de que eu soubesse explicar para uma plateia atenta e mais velha o sentido da pergunta. Dependendo do meu conceito sobre pulverização, ele seguramente devolveria a pergunta com alguma gozação. Lembre-se que naqueles tempos de chumbo, o medo imperava nas redações. Poderia ele, por exemplo, responder qualquer coisa, e até fazer uma nova provocação: “e você, o que faria com as verbas?” Engasguei-me, fiquei calado e o ministro avançou na peroração erudita.
Jânio
Jânio Quadros, por sua vez, era perito na arte de se fazer de surpreso. Perguntado por Leon Eliachar se o oval da Esso é mesmo oval ou aval, Jânio se toma de surpresa e arremete: “sugiro-lhe, amistosamente, uma consulta a qualquer psicanalista. O Brasil é tão mencionado nesse seu questionário, quanto a Esso“. Foi uma tremenda gozação. E diante da pergunta: “qual será seu slogan, 50 anos em 5 ou 5 anos em 60“? Jânio não hesita: “50 anos em 5, mais o pagamento dos atrasados“.
Mudar o sentido das perguntas
O truque de dar uma condição é matreirice das boas. “O senhor acredita em Deus” . Resposta: “se for provado que ele existe, acredito, sim.” O truque de mudar as palavras das perguntas é muito comum no meio político. Ao político, é perguntado algo assim: “o senhor vai dizer tudo que sabe aos procuradores“? E ele responde: “quem diz a verdade, tem tudo a seu favor. Quem não deve, não teme“. O truque de deturpar as palavras é usual. Exemplo: “o sr. acredita que o relatório do Banco Central não vai condená-lo?” Resposta: “o relatório pode ser uma peça de condenação ou de inocência. Se não comprova nada sobre minha pessoa, sou inocente. Quem me condena não é o banco. É a imprensa“. Começa a falar de sua vida e a discorrer da sofrida trajetória. O truque da autojustificação, na área política, é uma espécie de artimanha que procura encobrir a verdade: “o senhor favoreceu fulano de tal, que tem uma grande folha corrida no campo da corrupção“. E o político responde: “sou uma pessoa que acredita nos outros; sou de boa-fé, sempre procurei ajudar. Se alguém utilizou de minha boa-fé, certamente não foi com minha aprovação. Se soubesse que fulano era corrupto, não teria lhe dado ajuda“.
Debilitação física
Em inquéritos midiáticos, como CPIs de impacto, depoentes conseguem se amparar no recurso da súbita debilidade física. Lembro, no passado, juízes envolvidos no escândalo do prédio do Tribunal Regional do Trabalho em São Paulo, que apelaram para a debilitação física para obter regalias. Simular idiotice ou demência não é comum na cultura política, apesar de alguns políticos, sadios e inteligentes, demonstrarem, frequentemente, sintomas de demência. E, no capítulo da santificação, a regra é comum: políticos brasileiros não costumam reconhecer o erro, o pecado. Dizem-se inocentes e santos. Orgulhosos, luxuriosos, invejosos, vaidosos apresentam-se como franciscanos, beneditinos, lazaristas, integrantes de uma solidária comunidade ética e cristã. É assim a política.
O cardeal Mazzarino
Já o livro do cardeal Mazzarino é um manual da enganação. Eis seus preceitos:
Simula e dissimula
Mostra-te amigo de todo mundo, conversa com todo mundo, inclusive com aqueles que odeias; eles te ensinarão a circunspeção. De qualquer modo, esconde tuas cóleras, pois um só acesso prejudicará o teu renome em proporções muito maiores do que a capacidade de te embelezar de todas as tuas virtudes reunidas. Prefere os empreendimentos fáceis por seres mais facilmente obedecido e, quando tiveres que escolher entre duas vias de ação, prefere a facilidade à grandeza com todos os aborrecimentos que ela comporta. Age de modo que ninguém saiba tua opinião sobre um assunto, a extensão de tua informação, nem sobre o que queres, com o que te ocupas ou o que temes. Mas não convém esconder em demasia tuas virtudes nem te encolerizar com a demora das cerimônias religiosas, sem no entanto fazer-se de devoto. Mesmo que um pouco de brutalidade te permita obter alguma coisa, não faças uso dela.
Não confies em ninguém
Quando alguém fala bem de ti, podes estar certo de que ele te escarnece. Não confies segredos a ninguém. Mesmo se frequentemente teu valor é ignorado, não te faças valer a ti mesmo, nem tampouco te desvalorizes. Os outros te espreitam e esperam teu primeiro momento de relaxamento para te julgar. Se alguém te interpela e te insulta, pensa que está pondo à prova tua virtude. Os amigos não existem, há apenas pessoas que fingem amizade.
Fala bem de todo mundo
Fala bem de todos, jamais fales mal de alguém, temendo que um terceiro te escuta e vá relatar tudo à pessoa mencionada. Dos superiores só fala bem e louva especialmente aqueles de quem precisas. Uma veste presenteada, um repasto oferecido, serão sempre, a te ouvir, os mais belos do mundo.
Prevê antes de agir
E antes de falar. Se poucas são as chances de que se deforme para melhor o que fazes, o que dizes, podes estar certo de que, em compensação, tuas palavras e gestos serão deformados para pior. Atenção! Pode ser que neste exato momento haja alguém por perto que te observa ou te escuta, alguém que não podes ver”.
Um coronel dos coronéis
O cardeal Mazzarino, convenhamos, não é nenhum ideal de santidade e nem mesmo um exemplo de orgulho na galeria do cardinalato. Até porque recebeu o título de monsenhor sem nunca ter se ordenado padre. Ganhou o título do papa, em 1632, para realizar missões diplomáticas. Como se pode concluir, Mazzarino foi um político de mão-cheia. Entre nós, seria um “coronel dos coronéis”. Trata-se de um político que faz sua cartilha de valores a partir do cinismo, da falta de escrúpulos, da emboscada, do embuste, da falsidade e da dissimulação, entre outros conceitos negativos. Trata-se de um cultor do pragmatismo ou, numa visão mais brasileira, um legítimo representante do preceito franciscano “é dando que se recebe”.
Uma base amoral
Mazzarino constrói seu discurso sobre uma base amoral, onde a meta de atingir o poder absoluto ocupa o espaço central. Não deixa de ser uma confissão sobre a descrença nos valores do homem. Nesse sentido, os preceitos do cardeal podem se constituir em ferramenta afiada para políticos inescrupulosos que colocam a ambição desvairada pelo poder acima de tudo e de todos. Tudo vale, tudo pode ser empregado na política. Diferentemente de O Príncipe, de Maquiavel, o livro do cardeal Mazzarino é uma sequência de máximas assistemáticas e anárquicas.
- Parte II
Raspando o tacho
– Nicolas Maduro fez mais uma das suas. Garantiu que Deus pôs a mão nas urnas e abençoou seu nome. Deu uma de herege com direito a seguir o cardeal Mazzarino.
– A posição do Brasil sobre a Venezuela e o resultado do pleito fica em compasso de espera. Entre a cruz e a espada.
– O discurso de Lula, fazendo prestação de contas de 18 meses de governo, teve baixa repercussão.
– O ministro Fernando Haddad enfrenta uma ala do PT, que defende muita gastança. O partido vive fase de querelas internas.
– Bolsonaro entra de corpo e alma nas campanhas municipais, sob a meta de adensar e fortalecer o PL, a partir das bases.
– Valdemar da Costa Neto, quem diria, está vestindo o manto de dirigente do maior partido nacional. Com direito a dar as cartas do jogo.
Fecho a coluna com um conselho aos candidatos.
Princípios orientadores na busca do voto
1. Procurem expressar a característica mais importante de sua identidade – o foco.
2. Não esqueçam que o eleitor deseja travar conhecimento com o personagem. Circular no meio do povo é importante. Façam um esforço para multiplicar presença em vários locais – a onipresença é um valor insuperável. Planejar eventos rápidos em lugares e bairros diferentes em um mesmo dia. O mundo gira e a Lusitana roda.
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Gaudêncio Torquato jornalista, consultor de marketing institucional e político, consultor de comunicação organizacional, doutor, livre-docente e professor titular da Universidade de São Paulo e diretor-presidente da GT Marketing e Comunicação.
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A coluna Porandubas Políticas, integrante do site Migalhas (www.migalhas.com.br), é assinada pelo respeitado jornalista Gaudêncio Torquato, e atualizada semanalmente com as mais exclusivas informações do cenário político nacional.