Anunciados abaixo do preço e com diversas irregularidades, veículos ‘só pra rodar’ preocupam autoridades de trânsito e condutores podem responder criminalmente.
Veículos com multas e documento atrasado são vendidos em mercado paralelo em Sorocaba.
Eles estão por toda a parte, em muitas cidades. Aparecem em diversos anúncios de redes sociais e aplicativos de venda, com preços abaixo da tabela e inúmeros problemas. Em Sorocaba (SP), são anunciados da zona sul à zona norte da cidade. São os veículos “só pra rodar”, também conhecidos como “NPs”, sigla para “ninguém paga”, comercializados de forma informal e ilegal.
Em maio de 2018, um motorista da cidade teve a experiência desagradável de encontrar na caixa de correios um comunicado de multa gravíssima, por andar na contramão. Outras três notificações parecidas chegaram nos meses seguintes, vindas de outras cidades. O detalhe é que o veículo envolvido já não pertencia mais a ele.
A vítima vendeu o carro em 2012 e teve que acionar a Justiça para que o automóvel fosse transferido para o nome do comprador. O que ele não sabia é que mais de 10 anos depois, o veículo voltaria a ser uma preocupação: embora não seja mais o proprietário, o veículo foi anunciado com o nome dele no antigo documento.
E ele não é o único a ter esse tipo de “dor de cabeça”. São carros e motocicletas vendidos com número excessivo de multas e impostos atrasados. Situações que poderiam ser regularizadas, mas ao invés disso, alguns desses veículos são negociados diariamente em comunidades abertas e fechadas em redes sociais e aplicativos de venda.
Esses veículos custam até 80% abaixo do preço praticado no mercado. Quem procura este tipo de negociação sabe da procedência e dos riscos. Os anúncios são bem compreensíveis: “carro NP”, “só pra rodar” e “não compensa fazer o documento”.
Para a Polícia Civil, quem compra este tipo de veículo tem interesse em não pagar impostos e, principalmente, infringir as leis de trânsito.
“Você tem os crimes de trânsito, todos os crimes envolvidos aí… Questão de trafegar em velocidade incompatível. Além das multas, você tem os crimes que podem decorrer disso, relacionados a fraude, estelionato, apropriação indébita”, comenta o delegado Acácio Aparecido Leite, responsável pelo 8º DP, na zona norte de Sorocaba.
“E mais do que isso, os nomes, a pessoa que se dispõe a colocar seu nome num procedimento desse, está se sujeitando a ser futuramente indiciada, responder processo criminal e, infelizmente, não tá nem um pouco preocupada com a situação porque certamente será, futuramente, indiciada e responderá processo por estar envolvida em toda essa situação”, alerta o delegado.
“É o que a gente chama de desprendimento pela lei, desprendimento pela vida humana. A partir do momento que você coloca um veículo desse em circulação é óbvio que não está preocupado com as eventuais infrações que vai fazer. Um sinal vermelho, excesso de velocidade pode gerar um acidente grave e até a morte de um pai de família, de uma mãe de família.”
Cinco veículos e 130 multas
A reportagem simulou interesse em comprar cinco carros nessas condições. Juntos, eles somam mais de 130 multas, algumas gravíssimas, incluindo avanço de sinal vermelho e, principalmente, excesso de velocidade. Um dos veículos é um Prisma, ano 2009, oferecido por R$ 5,5 mil. O custo de mercado está na faixa de R$ 24 mil.
O preço tentador tem uma explicação. “Tenho o papel dele puxado aqui. Multa cinco mil e pouco… IPVA. Só aí são nove mil e pouco”, diz um dos vendedores que anunciavam o carro NP.
O veículo negociado rodou nas cidades de Piedade (SP), Iguape, Juquiá e Sorocaba. Ao todo, são 37 multas. “Esse aqui já estava só rodando. Vai passando de uma mão pra outra”, conta o atual “proprietário”.
Questionado sobre para quem vai a multa, ele responde rápido e confiante. “Vai pro cara, mano.” Ou seja, para quem está registrado como dono veículo. E ele diz que não há perigo. “Eu coloco as crianças aí e vou pra todo lado.”
A rotatividade desses carros pode ser analisada pelas infrações praticadas em diversas cidades. A superintendente do Detran explica que, não existe a nomenclatura “NP” para carros e motos.
“O veículo que está hoje circulando sem o devido licenciamento, é um veículo ilegal que é passível de apreensão até regularização administrativa que é pagamento dos débitos e licenciamento do veículo. O CTB estabelece que todo e qualquer veículo para circular em vias públicas, independentemente que seja no estado de São Paulo ou outros estados, precisa estar devidamente regularizado”, diz Amanda Couto.
“O que o cidadão que adquire esse veículo tem que ter bem claro é que, no momento da apreensão, por estar conduzindo um veículo não licenciado, será autuado.”
“Mas esses proprietários que fazem a venda pensando que não terão punição, o nome deles, por débito, poderá ir para o Cadin, uma inscrição em dívida ativa do governo do estado. Então, tanto para o proprietário em que o veículo está registrado, quanto para quem conduz o veículo, os dois serão penalizados.”
E quem é inscrito no Cadin sofre punições do governo do estado de São Paulo, as pessoas ficam impedidas, por exemplo, de receber qualquer incentivo financeiro e fiscal do governo e ainda não conseguem liberar os créditos do programa de nota fiscal paulista.
Com o mesmo histórico, a reportagem localizou também um Gol, ano 2009, que tem 30 multas. Na lista, infrações gravíssimas, como cruzar o semáforo vermelho, em horário de pico, no Centro de Sorocaba. Ele ainda tem mais uma dezena de infrações por excesso de velocidade.
O vendedor diz que o carro é “NP” porque deixaram de pagar o financiamento dele. “Esse carro com certeza compraram ele e não pagaram as parcelas. Os documentos foram atrasando e ninguém fez e só. Só esse carro aqui mano, já foi meu uns dois anos atrás. Eu andei e vendi. O carinha que eu vendi, andou, andou, andou, trabalhou com o carro e eu peguei ele de novo.”
Nenhuma garantia é dada sobre o veículo, outra característica desse tipo de negócio. O preço oferecido, de R$ 5,3 mil, é quase três vezes menor do a tabela. O veículo custa em média R$ 21 mil.
“(Se) os “homi” parar, tem que conversar bem. (…) Tá atrasado o documento. Na verdade eu nem puxei, mas eu não garanto nada. Vai que tem muito pra pagar lá, até por isso, tô pedindo valor baixo.”
Outro veículo negociado é um Corsa 1999. Ele tem dois registros de utilização de som não permitido pelo Contran. O endereço e o horário é um conhecido ponto de baile funk, o chamado “fluxo”, na Avenida Olinda Ayres Paulette, em Sorocaba. Ele também possui multa por falta de cinto de segurança. O valor oferecido é de R$ 6 mil, quase metade do que é pedido na tabela, na faixa dos R$ 10 mil.
A reportagem localizou também um Fiesta, ano 2006, que custaria, pelo menos, R$ 16 mil. Só que no mercado NP, ele sai por R$ 4,3 mil. Dentre as multas, há infração até por furar o rodízio de carros na capital paulista.
A pessoa que está vendendo conta que faz da situação um negócio. “Só multa, são R$ 7 mil e R$ 3 mil de IPVA. Não é financiado de banco, nada”, tranquiliza. “Eu pego pra negócio, compro e revendo, mexo com carro”, comenta o “empresário” de carros só pra rodar.
Dor de cabeça
O motorista vendeu o carro, mas o comprador não fez a transferência. O veículo foi encontrado à venda nas redes sociais. Trata-se de um Celta, modelo 2006, anunciado por R$ 6,2 mil – menos da metade do que vale na tabela que regula o preço dos veículos vendidos no Brasil.
A conversa com ele começa nas redes sociais, depois houve o encontro com o vendedor. De imediato, ele diz que não é possível regularizar a situação. O carro, como é praxe nesses casos, não está no nome dele. “Não documenta. Tem multa, IPVA…”
O veículo é licenciado somente até 2018, depois virou “só pra rodar”. Os débitos ultrapassam os R$ 8 mil, somando licenciamento e IPVA atrasados e as 46 multas. Somente 40 dessas multas são por excesso de velocidade.
“Essas pessoas utilizam e não têm medo de levar as infrações, ultrapassam sinal, não param em faixa de pedestre. Essa é nossa principal preocupação, as vidas e os sinistros que acontecem. [A] fiscalização da PM, em parceria com o Detran, para identificar veículos sem licenciamento são frequentes. A gente aperta a fiscalização para impedir que veículos causem risco para quem está no trânsito”, comenta Amanda.
“No caso de um motorista flagrado conduzindo um “NP” com bloqueio de furto e roubo, será enquadrado por crime de receptação. Será, inclusive, encaminhado à delegacia e processado. No caso de bloqueio judicial, pode responder por estar na condução do veículo. Não só o condutor, mas também o proprietário.”
Fonte: G1