Abro com um “causo” da Justiça.
Esselentíssimo juiz
Ao transitar pelos corredores do fórum, o advogado, que também era professor, foi chamado por um dos juízes:
– Olha só que erro ortográfico grosseiro temos nesta petição. Que coisa vergonhosa!
Estampado logo na primeira linha do petitório lia-se:
“Esselentíssimo juiz“.
Gargalhando, o magistrado perguntou ao advogado:
– Por acaso, professor, esse advogado foi seu aluno na faculdade?
– Foi sim – reconheceu o mestre. Mas onde está o erro ortográfico a que o senhor se refere?
O juiz pareceu surpreso:
– Ora, meu caro, acaso você não sabe como se escreve a palavra Excelentíssimo?
Então explicou o professor:
– Doutor juiz, acredito que a expressão pode significar duas coisas diferentes.
Se o colega desejava se referir à excelência dos seus serviços, o erro ortográfico efetivamente é grosseiro. Entretanto, se fazia alusão à morosidade da prestação jurisdicional, o equívoco reside apenas na junção inapropriada de duas palavras.
O certo então seria dizer:
“Esse lentíssimo juiz“.
… Silêncio geral!
Depois desse episódio, aquele magistrado nunca mais aceitou o tratamento de “Excelentíssimo juiz”, sem antes perguntar:
– Devo receber a expressão como extremo de excelência ou como superlativo de lento?
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Nas Porandubas de hoje, tento mergulhar nas águas do ethos nacional. Compreender o que é e como o brasileiro abre trilhas para o entendimento dos nossos costumes e o modus operandi da política.
- Parte I – O ethos nacional
Errado no lugar do certo
Quem escreve errado por linhas corretas? O brasileiro. Para ser mais justo, os políticos. Mais certo, os governantes, que não cumprem promessas de campanhas, que administram como donos de feudos, que geralmente governam no estilo dos três macaquinhos: não vi, não ouvi, não falei. E assim, corroboram a expressão: o dito pelo não dito. O tanto faz como tanto fez. O Brasil é o território por excelência para abrigar a desorganização dos Trópicos.
Uma historinha
Costumo ilustrar a cultura do país com uma historinha. Há quatro tipos de sociedade no mundo. A primeira é a inglesa, a mais civilizada, onde tudo é permitido, salvo o que é proibido. A segunda é a alemã, sob rígidos controles, onde tudo é proibido, salvo o que é permitido. A terceira é a totalitária, pertinente às ditaduras, na qual tudo é proibido, mesmo o que é permitido. E, coroando a tipologia, o quarto tipo, a sociedade brasileira, onde tudo é permitido, mesmo o que é proibido.
Heterogeneidade
Como explicar o fato de o Brasil ser um país tão usado como caricatura da esquisitice? Fazendo uma leitura sobre o ethos nacional. A engenharia social brasileira, assentada sobre a miscigenação de raças (colonizadores portugueses, índios e negros), expressa uma heterogênea coleção de valores. Temos, porém, uma unidade étnica básica, apesar da confluência de tão variadas matizes formadoras, que poderiam, na visão de Darcy Ribeiro, resultar numa sociedade multiétnica, “dilacerada pela oposição de componentes diferenciados e imiscíveis”.
Um povo-nação
Nosso saudoso antropólogo e ex-senador, em seu livro O Povo Brasileiro, arremata: “Mais que uma simples etnia, porém, o Brasil é uma etnia nacional, um povo-nação, assentado num território próprio e enquadrado dentro de um mesmo Estado para nele viver seu destino. Ao contrário da Espanha, na Europa, ou da Guatemala, na América, por exemplo, que são sociedades multiétnicas regidas por Estados unitários”.
Trabalhador? Desconfiado?
A adjetivação para qualificar o homo brasiliensis é vasta e, frequentemente, dicotômica: cordial, alegre, trabalhador, preguiçoso, verdadeiro, desconfiado, improvisado. Afonso Celso, em Porque me Ufano do meu País, divide as características psicológicas do brasileiro entre positivas e negativas, dentre elas a independência, a hospitalidade, a afeição à paz, caridade, acessibilidade, tolerância, falta de iniciativa, falta de decisão, falta de firmeza, pouco diligente.
Antagonismos equilibrados?
Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, pontifica: “Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo”.
O primeiro mito
Sérgio Buarque de Holanda, no clássico Visão do Paraíso, desenha a paisagem que baliza a índole nacional, com o pincel dos três mitos que construíram a moldura do nosso tecido valorativo. Primeiro, o mito do Éden. Ao aportarem, os nossos colonizadores se depararam com a exuberância da natureza e seus habitantes, rudes e inocentes, índios sem vestes, uma paisagem deslumbrante, o jardim do paraíso. A descoberta do país proporcionou ao europeu: “o enlevo ante a vegetação sempre muito verde, o colorido, a variedade e estranheza da fauna, a bondade dos ares, a simplicidade e inocências das gentes”, como, aliás, já escrevera Pero Vaz de Caminha. Sob essa primeira visão, a seara valorativa produziu seus primeiros frutos: o ócio, a indolência, a sensualidade, a voluptuosidade, a glutonaria, a improvisação, a festa, a dança, o eterno carnaval.
O segundo mito
O segundo mito: o Eldorado. As riquezas apareciam ao longo das descobertas do ouro e das pedras preciosas. Na esteira da exploração predatória, outro conjunto de valores tomou corpo: a cobiça, a ganância, a traição, a destruição da natureza, a ambição, a disputa, a guerra entre grupos, os conflitos.
O terceiro mito
O inferno verde é o terceiro mito. A cobiça levou os colonizadores ao interior profundo. A floresta despontava como ambiente inóspito, selvagem, agressivo. As doenças debilitaram corpos, fustigando as mentes. Claude Lévi-Strauss, em seu celebrado Tristes Trópicos, radiografava o Brasil como o lugar mais inabitável do planeta, onde seria impossível a um homem sobreviver. Na paisagem da conquista do interior do país, outro feixe de características aparece: a miséria, a desorganização, a improvisação, a sujeira, a marginalidade, o desleixo.
Outros ingredientes
O sentido da importância individual: “Você sabe com quem está falando?” O gosto pela imprecisão, para a ausência de objetividade: “Quantas horas você trabalha por semana?” “Trabalho mais ou menos 40 horas“. Petrolândia nunca teve petróleo. Nos termos de Jorge Amado, a Bahia de Todos os Santos é a Bahia de Todos os pecados. O senhor é católico? “Sou, mas não frequento a igreja“. O mais ou menos é coisa muito nossa. O fingimento: o político, ao cumprimentar o interlocutor, pisca para alguém que está ao lado.
O sentido de grandeza
O catastrofismo comum na interlocução diária: os maiores potenciais, as maiores riquezas ou a mais degradante miséria. A propensão para a protelação do fazer: vou deixar para amanhã. A semente da anarquia. Buarque de Holanda em Raízes do Brasil: “os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade ou a indolência displicente das instituições e costumes. As iniciativas, mesmo quando construtivas, foram continuamente no sentido de separar os homens, não de os unir“.
Vulcão emotivo
O apadrinhamento, o patrocínio dos favores, o ludismo. Somos o país do futebol. E um vulcão de explosões emotivas. Trocamos com facilidade o choro pelo riso, a festa pela briga. A recorrência aos eixos valorativos e a descrição de seus efeitos sobre o caráter da política se fazem presentes nas abordagens que expresso em minhas análises. Desde a Independência, conservamos o feito para compor arranjos partidários, múltiplas colorações, sistemas de governos, alguns de talhe autoritário e outros traumáticos, farta produção de cartas constitucionais e o desenvolvimento dos corpos jurídicos que plasmam a arquitetura do Estado.
- Parte II
Raspando o tacho
– A escolha da advogada Daniela Teixeira para o STJ sinaliza a indicação de um homem para o STF. Minha leitura. Daniela, componente da lista tríplice de advogados encaminhada ao presidente, é preparada, tem visão progressista e é muito bem relacionada nos universos jurídico e político. Um tento de Lula.
– Dizem que a primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja, faz pressão para Lula indicar uma mulher ao Supremo. Dizem também que a disputa está hoje entre dois homens: o ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias, e o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas. Lula quer nomear uma pessoa com a qual tenha interlocução.
– Do modo como se apresenta a reforma tributária, o setor de serviços vai pagar o pato, a conta, algo que beira 96% de impostos e tributos. O setor de serviços é o que detém a maior fatia do PIB, 70%, e o maior empregador, 60% dos empregos. A indústria, como sempre, trabalha com o lobby mais poderoso. E aí, meu amigo Hauly?
– Lula cria Ministério da Pequena e Média empresa e do Empreendedorismo. Para acolher o Centrão. Mais um espaço burocrático. Quase 40 ministérios. 15 a 20 já seria uma boa régua.
– A taxação dos super-ricos, investidores de fundos fechados, passará pelo crivo parlamentar? Tenho dúvidas.
– Déficit zero no Orçamento de 2024? Duvido.
– A violência no país chega ao cume da montanha. Chacinas e mortes em tiroteio na festa da bala.
– Deputado Rubens Pereira Junior, do PT do Maranhão, quer mexer em tópicos da legislação eleitoral, a saber: 1) federações partidárias, prestação de contas,) propaganda eleitoral, regras do sistema eleitoral, registro de candidatura, financiamento de campanhas, inelegibilidade e violência política contra a mulher.
– Bolsonaro faz queixa-crime, recurso contra o hacker Walter Delgatti Neto, conhecido por invadir o Telegram de membros da operação Lava Jato, por suposta prática do crime de calúnia.
Fecho a coluna com o meu RN.
“Só quero os ócro”
O oftalmologista Manoel Teixeira de Araújo recebeu a mulher em seu consultório, em São João do Sabugi, para um exame de vista. Convidou a paciente para ler a tabuleta, para a qual apontava: “Por favor, a senhora pode ler estas letras“? Em sua sertaneja ingenuidade, a mulher respondeu com calma e muita convicção: “Doutor, ler mesmo eu não sei não, mas essa menina que tá aqui pode fazer isso por mim. O que eu quero mermo é os ócro. Só os ócro“.
Divertida historinha narrada por Valério Mesquita, da Academia Norte-riograndense de Letras, historiador e nosso pesquisador de “causos”.
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Gaudêncio Torquato jornalista, consultor de marketing institucional e político, consultor de comunicação organizacional, doutor, livre-docente e professor titular da Universidade de São Paulo e diretor-presidente da GT Marketing e Comunicação.
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A coluna Porandubas Políticas, integrante do site Migalhas (www.migalhas.com.br), é assinada pelo respeitado jornalista Gaudêncio Torquato, e atualizada semanalmente com as mais exclusivas informações do cenário político nacional.