Um trajeto de mais de quatro horas em ônibus rodoviário pode ser revelador dos muitos processos da fisiologia humana. O confinamento a que as pessoas são submetidas facilita muito a observação pela audição, pela visão e pelo olfato, pois mesmo sem a sensibilidade muito apurada é impossível não perceber as mudanças ambientais ocorridas no período.
A entrada no coletivo em filas de senhoras, senhores, moças, rapazes, crianças e alguns bebês, além das muitas malas e bolsas que passam a ocupar o apertado bagageiro sobre as cabeças, é a largada da maratona de sensações que o passageiro passa a experimentar de forma involuntária. Perfumes e desodorantes discretos e outros exagerados, ou a falta deles, o odor do plástico vermelho que recobre as poltronas, mais os filetes de fumaça dos ônibus vizinhos, somados aos resíduos da viagem anterior disfarçados com produtos a base de cloro formam o coquetel inicial que invade as narinas mais atentas.
O calor que incomoda a todos durante os infindáveis minutos até que o motor seja acionado para a partida do ar condicionado faz com que muitos sentidos sejam provocados. Janelas escancaradas deixam entrar o cheiro indefectível da poluição da cidade grande, enquanto as cortinas escuras se debatem freneticamente sobre os vidros corrediços. Depois do embalo após o congestionamento às margens do esgoto democrático, a TV é ligada e quase todos se acomodam em seus assentos, menos aqueles que logo na saída começam a explorar o banheiro químico que exala naftalina pela porta estreita e ruidosa.
A rápida passagem do tempo e a circulação do mesmo ar ambiente causa certo efeito anestésico olfativo, mas independente da sensibilidade já sedada do viajante, os fluídos e seus odores também viajam acumulados no pequeno espaço compartilhado. Os mesmos perfumes e desodorantes com curto tempo de validade se misturam aos resíduos da transpiração que se fixam em tecidos naturais e sintéticos de camisas, calças e peças íntimas.
A procissão cada vez mais intensa até o bebedouro de copinhos gelados revelam os extratos individuais provenientes de glândulas sudoríparas. Efeitos dos hálitos também se multiplicam, enquanto aqueles que preferem aliviar os pés cansados das botinas e dos sapatos apertados também oferecem a péssima contribuição ao meio ambiente confinado.
Depois das primeiras duas horas de troca involuntária das secreções de flagrâncias duvidosas, chega-se finalmente ao primeiro restaurante coletivo, onde o veículo público estaciona ao lado de muitos outros que seguem a mesma rota. Nova fila no corredor, mais sensações e aromas compartilhados e a chegada ao sanitário de aspecto e higiene duvidosos, de piso molhado e salpicado de papeis encharcados. Menos de meia hora para aliviar as entranhas excretoras e alimentar as receptoras.
Misto quente ou frio, pastéis, bolinhos de carne, lanches com todos os Xis imagináveis, sucos coloridos naturais e artificiais, fila na pista do bandejão que carrega torresmo e até churrasco gordo, cervejas mais ou menos geladas em copos plásticos e doses cavalares de refrigerantes de muitas fórmulas e com excesso de gases. Tudo deglutido em tempo recorde, seguidos de arrotos disfarçados e dentes palitados nas mesas e no balcão, com sobremesas de café de máquina e doces caipiras.
Para garantia da sobrevivência e justa partilha com vizinhos ou familiares em sono profundo, levam-se sacos de biscoitos de polvilho, tabletes de chocolates, porcarias variadas nas embalagens metálicas coloridas e sobras de líquidos em garrafas nunca descartadas. Crianças desesperadas, mães aborrecidas, amamentação complicada nos bancos pequenos e nova acomodação com a largada do coletivo infectado de sabores, odores e gases.
Na segunda etapa da jornada pode-se calcular o mínimo de 400 gramas de alimentos sólidos, líquidos e gasosos, que somam prováveis 20 quilos em processo digestivo lento pela elaboração mecânica e química nos órgãos espremidos nos ventres encolhidos pela posição incômoda de poltronas pouco reclináveis. Sucos digestivos oriundos da mastigação que liberam salivas, sucos gástrico, pancreático e intestinal no sistema de funcionamento comprometido pelos excessos e a variedade de materiais a ser diluídos pelos movimentos peristálticos de contração mecânica involuntária.
Os efeitos da progressão dos bolos alimentares pelos condutores digestivos estomacais e intestinais causam ruídos estranhos ouvidos a boa distância. A fermentação demorada acumula gases nas alças dos tubos que recebem as substâncias graxas para finalização do processo e eliminação dos resíduos excedentes. Nova procissão à casinha, agora fétida.
E, com o consumo de muita energia física e mental usada para superar as adversidades e enfrentar seus efeitos, chega o sono reparador orquestrado de roncos, assopros e irrigado à baba que escorre pelos cantos das bocas, até a formação de nova fila, de chegada ao ponto final. Quem não presta atenção nos detalhes significantes, não viaja na maionese, no catchup e na mostarda.