CELULAR RODOVIÁRIO

Deveriam proibir o uso de celular em ônibus rodoviário. Melhor ainda. Deveriam instalar bloqueadores, daqueles que não funcionam nos presídios, mas que poderiam evitar o uso indiscriminado dentro daquela caixa metálica ambulante sobre rodas.

Cheguei a essa conclusão depois da última viagem de São Paulo para o interior, quando testemunhei um festival de ruídos, luzes coloridas e conversas particulares em público. Havia mais celulares que os 44 passageiros e muito mais chips que celulares.

Alguns chegavam a desmontar o aparelho no escuro para fazer a troca da operadora e falar com pessoas diferentes. As campainhas infernais, com muita variedade e péssimo gosto. Tem as que imitam os telefones antigos, do modelo discado, outras que tocam músicas clássicas e o circo dos horrores com o toque prolongado do berrante, o hino do Corinthians e até o último sucesso relâmpago do Luan Santana.

Todos são obrigados a ouvir a conversa alheia e também a se confundir, procurando em bolsos e bolsas o próprio celular de campainha repetida. Sem falar das luzes, verdadeiros holofotes coloridos que no escuro do coletivo iluminam o portador do equipamento e ainda refletem até no teto.

São muitos, acesos e apagados ao mesmo tempo, que transformam o ônibus em ambiente de boate das antigas. Muito pior que as campainhas e as luzes são as conversas em volume elevado.

Duas poltronas à minha frente, uma senhora aparentando mais de 70 anos chegou a narrar para a filha toda a saga da sua cirurgia de implante dentário: – Foi horrível, filha, nem a anestesia pegava, estou com a língua amortecida até agora. Imaginem se não tivesse. E ela continuou sem pudor: – Fiquei mais de quatro horas na cadeira, quase perdi o ônibus. Deveria ter perdido, pensei no meu silêncio observador e irritado. E completou: – Tinha até carne necrosada na gengiva, o meu caso é grave mesmo. Sem comentários.

Lá atrás, uma jovem mulher, ao lado do paciente marido, falava incessantemente com a mãe e as filhas, detalhando suas aventuras na cidade grande, a passagem pela 25 de Março e até fazendo suspense sobre os presentinhos que comprou: – Estou levando um croissant, aquela blusinha que você pediu e uma surpresa, que não é de por no pé.

Ora. Se não é para os pés, não é apenas meia ou sapato, deixando um leque enorme de opções. A filha deve ter perguntado se o croissant estava quente, pois ela disse em alto e bom som que já havia esfriado. É obvio que a guloseima de massa fina e gordurosa iria chegar gelada e murcha em Martinópolis, onde ela disse morar para a mulher do outro lado do corredor.

Para a mãe ela explicou sobre o exame médico, possivelmente para licença de saúde de funcionário estadual: – Levei todos os exames e vieram três médicos para a perícia. Não tiveram como negar, falou com certo orgulho.

Depois de mais de 30 quilômetros seguidos de conversa, ela sentenciou: – Quando eu chegar explico tudo em detalhes. Como se tivesse sobrado algum assunto a ser dito pessoalmente.

Um pouco a frente, um sujeito falava com mais discrição, possivelmente com a esposa, ou sabe-se lá, enquanto outro enviava e recebia torpedos, olhando fixamente, como que hipnotizado pelo celular.

Ao meu lado, na poltrona do corredor, viajou um senhor negro, de meia idade, aparência sóbria, silencioso, de quem não se ouvia sequer a respiração. Ele praticamente não se movia e nem respondeu a meu pedido de licença para ocupar minha cadeira. Pensei em comentar com ele o absurdo que é uso de celulares nos ônibus, mas preferi manter silencio sobre minha indignação.

De repente, ouço um toque, do mais tradicional, muito próximo à minha perna. Para minha surpresa, meu vizinho de viagem coloca a mão no bolso e retira um pequeno aparelho, do modelo antigo. Alonga o braço para decifrar mais a distância o nome iluminado na tela e perde aquela pose comedida ao dizer um sonoro Oooi, com voz de locutor de programa de rádio na madrugada.

Detalhista, ele explica que o ônibus acabara de sair de Osasco, mas que ainda não havia chegado na Castelo Branco. Falava meio em código, possivelmente a uma mulher, e diz que não seria preciso esperá-lo e que faria a caminhada na madrugada: – É perto do rodeio, não é?, perguntou, denunciando tratar-se de uma nova ou antiga conhecida, mas que não sabia ou não se lembrava exatamente aonde morava.

Menos de duas horas depois o telefone daquele senhor, que ainda mantinha a aparência austera, se ilumina todo e toca novamente. Ele repete aquele Oi sedutor e explica mais uma vez sua posição geográfica: – Acabou de sair do Rodo Serv, a viagem está tranquila, o motorista é cuidadoso.

Em seguida, perde um pouco da reserva da conversa ao dizer que estava indo com aquele propósito firme e que esperava que tudo desse certo. Mas, imediatamente, tenta evitar detalhes e despista, como se tentasse conter a ansiedade da mulher: – Pode dormir tranquila, depois conversamos mais, não precisa esperar, mas se você quiser devo chegar por volta das 3 horas. Um bom horário para reencontro, pensei eu, fingindo dormir.

Decepcionado com aquele senhor que imaginei como sendo austero, reservado e compenetrado, senti-me um extraterrestre em meio aos passageiros despudorados que conversaram sobre assuntos pessoais dentro do coletivo ruidoso, com todos ouvindo suas particularidades, mas que agora dormiam no silencio rompido apenas pela alternância da rotação do motor nas sucessivas trocas de marchas.

E eu, que havia conseguido controlar aquela minha mania de a toda hora conferir a hora no celular, de repente fui traído pelo autocontrole até então mantido com dificuldade e saquei do bolso o meu Smartphone de penúltima geração.

O aparelho enorme iluminou com sua luz azulada até duas poltronas à frente e três atrás. Ninguém me ligou durante a viagem e também não tive para quem ligar, mas naquele momento me senti envergonhado apenas ao imaginar que todos souberam que eu também carrego e uso celular no ônibus.

 

 

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Cláudio Pissolito

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