Velhos amigos velhos

As festas de final de ano são propícias para reencontrar amigos de muito tempo. Desde o ano passado, depois de “sessentar” discretamente, tive o privilégio de rever antigos amigos e conhecidos: aqueles dos tempos da infância, do futebol no terrão, do primário e ginasial, das aventuras nos trens, das repúblicas na metrópole e de outros bons momentos que só a vida pré-adulta oferece.

A principal descoberta desses encontros com mais tempo, depois de longo período de trabalho e correria em busca do sucesso abstrato e da independência inatingível, foi que os velhos amigos se transformaram em amigos velhos. Maioria grisalha ou careca, mocinhas de vistas e passos curtos e rapazes em bengalas. Quase todos aposentados, desfrutando benefícios do estacionamento preferencial, do ônibus gratuito e com muito mais disposição para revisitar o passado do que planejar o futuro.

Vidas resolvidas ou conformadas, filhos bem ou malcriados. Desfrutando vantagens previdenciárias incalculáveis ou imprestáveis, de abdomens protuberantes, orelhas crescidas, canelas afinadas, equilíbrio duvidoso e memória retroativa. São troféus conquistados em longos anos de labuta nos bancos escolares, em confinamento no chão de fábricas, de prisão no interior de lojas ou nos escritórios. Tudo pela abnegação em busca do futuro que finalmente começa a chegar exatamente no ocaso de mais de dois terços da vida percorrida graças à boa dose de esforço, prudência e acaso.

Sequelas do passado tão próximo, da irresponsabilidade juvenil, dos arroubos da juventude e da idiotice cronificada na maturidade se manifestam de variadas formas. Solados que se arrastam, pernas que falham, bocas repuxadas, descamação de pele, hemorroidas secretas, marca-passos camuflados, próteses desalinhadas e vistosas cicatrizes queloides no alto da caixa torácica como marcas de almas voluntariosas, sofridas ou arrependidas.

As preocupações não são o tônus do bíceps, a ondulação e o brilho dos cabelos, o caimento do traje, a atração do sexo oposto e muito menos o ano, a marca ou a potência do automóvel, mas sim a rebeldia dos filhos imaturos e o futuro dos netos que chegam. Em vez da cachaça, um inibidor de secreção gástrica. No lugar do sol da praia, a sombra do flamboyant da praça. Para acordar, uma pílula anti-hipertensiva. Para dormir, uma dose de ansiolítico. A grande conquista pode ser a regularidade intestinal ou a digestão sem flatulência. Tudo tem seu preço e seu valor, desde a potência do fluxo urinário à capacidade de roer torresmos.

Nos encontros mais frequentes na fila da farmácia, no campo de bocha, na sequência numérica da senha do consultório, na portaria do bailão dos idosos ou no caixa prioritário da lotérica, os assuntos se repetem. Se troca receitas de novos medicamentos, sugere bons urologistas, fala-se da próstata e se exibe proezas de até duas voltas no quarteirão quase todas as tardes.

E assim se dá sequência ao torneio de vaidades e futilidades iniciado na primeira infância e que se reproduz no crepúsculo não admitido da vida fugaz de um sopro só. Como na passagem do cometa, o curto hiato entre chegada e partida inibe a observação e o aprendizado da origem da força motriz, de sua direção e de sua motivação. Seja criança, jovem, adulto ou velho, tudo resvala na mais pura essência da efemeridade desumana. Ainda assim, o melhor do Ano Novo é rever velhos amigos velhos.

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Cláudio Pissolito

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