NOTA DE FALECIMENTO

Um costume antigo, estranho e sinistro mantido pela cultura da comunicação municipal de Palmital é a Nota de Falecimento. Trata-se de um aviso público automotivo tristonho, com música fúnebre e uma boa dose de suspense que faz muita gente perder o fôlego e apurar os ouvidos quando percebe qualquer sinal desse ruído percorrendo as ruas da nossa metrópole esquisita.

Em cidade pequena, um velório de gente conhecida ou importante pode ser um programa interessante, animado e, certamente, ponto de encontro de velhos amigos e parentes desconhecidos ou desaparecidos, incluindo os endividados que se foram sem deixar endereço. Sem contar a água gelada, o lanchinho e o café fresco.

Também é o momento certo para cumprimentar os desafetos e rever os “Exs”, quando o finado não é o próprio. Assim como todos se reúnem para chorar o passamento, prematuro ou tardio, viúvas e viúvos clandestinos aparecem para a despedida final e, mesmo que seja de soslaio, observar a reação de quem de fato ficou com a herança.

No caso do morto que durante o tempo produtivo e reprodutivo da vida já passada contraiu muitos matrimônios e outras relações menos públicas, surge até concorrência pela nobre condição momentânea da viúves que garante generosa fila de manifestações calorosas de pêsames e sentimentos quase sinceros.

Basta o finado dar o último suspiro para que alguém já saia a procura de um carro de som para anunciar o acontecimento. Parece até que existe satisfação em comunicar o fato triste, uma forma de compartilhar publicamente o sofrimento pela perda do saudoso.

Os parentes chegam a divergir sobre a melhor forma de identificar o falecido, pois quando o morto não é muito conhecido, é preciso informar o apelido e até mesmo uma indicação de parentesco. Essa escolha difícil pode gerar ciúme e até desavença entre os familiares.

Resolvida a questão, ficam todos atentos para conferir o resultado do anúncio, que deve percorrer todas as ruas e atingir o maior número de amigos e inimigos e também de conhecidos e desconhecidos.

O anunciante terceirizado sempre procura cumprir sua parte e, para não deixar qualquer dúvida, faz várias passagens próximas às casas dos parentes e até do próprio velório para comprovar o cumprimento integral do contrato de publicidade fúnebre.

Quando o defunto é importante, o veículo passa mais devagar e informa em minúcias o horário e o local da morte e também a hora exata do sepultamento, quando o locutor até usa a voz mais embargada. Os mais simples não recebem o mesmo tratamento e muita gente fica sem saber quem de fato morreu.

Mesmo com as muitas explicações, como sendo o esposo da saudosa Fulana de Tal ou cunhado de Beltrano, que trabalha em tal lugar e antigo morador de não sei aonde, muitos ignoram completamente a identidade de quem se foi.

O texto do locutor fúnebre é antigo e repetido, mas de enorme audiência. Serve como notícia importante para o ouvinte interessado em avaliar a necessidade de uma visita ao velório ou a encomenda de uma coroa de rosas vermelhas. Tanto pela velocidade da viatura que faz o anúncio volante, como pela quantidade de flores recebida, é que se verifica a condição econômica e social do defunto.

A abertura é sempre com a Ave Maria em cadência lenta, que a torna um tanto quanto triste e já antecipa o fato pesaroso. Com o preâmbulo muito longo e texto entrecortado nas sílabas, o locutor informa solenemente o ocorrido, mas demora muito para informar o principal, que é o nome do falecido. Para tristeza de muitos, o carro passa e ninguém fica sabendo quem morreu.

Quando se ouve o mórbido prefixo introdutório da Nota de Falecimento propalado publicamente, é preciso fazer silêncio absoluto em casa, no trabalho ou no bar. Interrompe-se o assunto de imediato, diminui o volume da televisão e todos permanecem atentos às informações.

Qualquer ruído desnecessário durante o informe fúnebre é motivo de desavença entre os ouvintes interessados. A irritação é grande quando o carro passa antes de dizer o nome do finado ou o caminhão da laranja confunde a informação.

Às vezes, mesmo com o silêncio combinado para captar todo o informe de imediato, chega-se a um desapontamento lastimável. Quando a voz surge distante, o curioso corre para a janela, abre o basculante e quase enfia a cabeça para fora. Depois do triste e longo preâmbulo, ouve-se o singelo convite para uma missa de sétimo dia, o que causa uma enorme decepção. Afinal, quem morreu há sete dias já não mais interessa.

 

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Cláudio Pissolito

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